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“Ideb 2021 pode não refletir a realidade”


Avatar Por Redação Tribuna do Planalto em 26/09/2022 - 11:15

Roberta Panico, diretora pedagógica da Comunidade Educativa CEDAC
Dos dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) 2021, não é a queda na aprendizagem que preocupa os especialistas em Educação, que esperavam, em razão da pandemia de Covid-19, um recuo em um grau maior. A provável falta de conexão do resultado da prova coma realidade escolar é que os deixa em alerta, haja vista que muitos fatores inerentes à crise sanitária, como evasão e a mudança nos critérios de aprovação adotados em 2020, podem ter mascarado os resultados. A diretora pedagógica da Comunidade Educacional CEDAC, Roberta Panico, acredita que os estudantes mais vulneráveis não estavam na escola na realização dessa prova.

TRIBUNA DO PLANALTO – Houve surpresa no resultado do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) ou já era esperado esse recuo no processo de aprendizagem, em razão da pandemia?

ROBERTA PANICO – Já era esperado, sim. Essa questão do fechamento das escolas, fomos um dos países em que as escolas ficaram fechadas por mais tempo por conta da pandemia e mesmo por conta de algumas características regionais, como a dificuldade de acesso a essas escolas. Somos um país muito diverso, talvez diferente de outros países em que as coisas são mais centralizadas. Era de se esperar e, inclusive quando vimos o resultado do Brasil, está muito melhor do que esperávamos. E isso traz preocupações, porque, na verdade, precisamos ir mais a fundo do que simplesmente constatar que não estamos tão ruins.

Quer dizer que a prova foi realizada em um período no qual nem todas as redes de ensino haviam retomado as aulas presenciais e que o resultado pode não refletir a realidade?

Isso é fato. Quando a avaliação foi realizada, nem todos os estudantes que estavam frequentando as aulas em 2019 haviam retornado. Então, podemos pensar em uma seleção, nada natural, mas uma seleção onde os alunos com mais vulnerabilidade, que provavelmente são os alunos que se que evadiram, e, portanto, não estavam na escola na realização dessa prova.

O crescimento da evasão durante a pandemia não foi considerado no Ideb?

O índice de evasão não entra na composição do Ideb, que não é sensível a elena questão estatística. A que é sensível? À aprovação e à proficiência, sendo que a proficiência avaliou uma parte dos alunos que não evadiram. Não sabemos quem evadiu, mas supomos que, obviamente, foram os meninos que tinham mais dificuldades de estarem vinculados à escola, de terem acesso aos materiais porque, talvez, a escola fosse o menor problema da vida deles naquele contexto. A prova não pegou os alunos que tinham mais dificuldades, estamos avaliando um pouco por um grupo mais acima.

O que mais preocupa em relação ao Ideb 2021 seria o fato de o resultado não refletir a realidade?

Pode não refletir, principalmente porque os alunos que tínhamos em 2019 não são os mesmos do ano de aplicação da prova. Com certeza tivemos uma enorme evasão. Uma outra coisa que também pode mascarar esse resultado é a taxa de aprovação e, essa, sim, está composta dentro do Ideb. Houve normativas do Conselho Nacional de Educação que apontavam a importância de não se reprovar os alunos nesse contexto, porque a culpa não era deles. Muitas redes adotaram o contínuo curricular e a aprovação automática, que era o mais justo naquele momento. Isso elevou o percentual de aprovação das redes. Em um resultado anterior, esse índice era menor, o resultado era X; quando subimos esse índice, o resultado vai ser Y. Isso também pode ter mascarado o resultado. Qual é o principal problema da avaliação? A comparação, porque não tínhamos o mesmo contexto de 2019, portanto, precisamos olhar esses dados com cuidado. Não dá para acreditar que ele revele a qualidade da educação depois de uma pandemia. Essa é uma questão que temos apontado muito para as redes municipais, estaduais e federais com as quais trabalhamos: o Ideb é importante, não estamos desqualificando o indicador, que está disseminado nacionalmente e tem revelado muito a melhoria da qualidade da educação no nosso país; tem direcionado para algumas políticas, para algumas ações, mas temos que olhar o de 2021 não com o mesmo contexto que olhávamos os anteriores porque os resultados podem ser mascarados no sentido de que é um retrato de um momento bem específico. A Teresa Perez, diretora-presidente do CEDAC, diz que deveríamos calcular a proficiência dessa prova com o índice de aprovação de 2019. Há muitas coisas para se pensar quando olhamos esses resultados.

A pandemia pode ter aumentado a desigualdade educacional no país, considerando que não houve uma ação centralizada, e cada município adotou as medidas que considerou mais viáveis?

Eu acho que sim, porque houve pouca colaboração entre os entes federados para tentar segurar pelo menos uma situação mínima e comum. Não tivemos uma coordenação nacional e não foram todos os estados que tiveram condições de sustentar o mínimo também com seus municípios. Parece que cada um ficou cuidando da sua rede nas condições que tinham. E poderia ser muito potente a colaboração entre os estados e os municípios, considerando que um estado tem municípios com diferentes características. Eu acho que o estado ainda pensa em políticas muito comuns a todos, e isso acaba não pegando. Imagina que tenha um município no seu estado em que que a grande maioria das escolas é rural. É outra tomada de decisão, é um apoio diferente do dado a uma grande capital. As ajudas deveriam considerar essa diversidade e o que vimos é que, quando ela existiu, muito pela normatização dos conselhos estaduais de educação – isso era o que mais os municípios precisavam para não tomar uma decisão aleatória e depois sofrer as consequências disso, por não ter, às vezes, o conselho municipal de educação ou ser um sistema próprio – era muito unilateral. Sem considerar essas diversidades geográficas, econômicas, sociais desses municípios. Eu acho que cada um tentou resolver do seu jeito. O que era uma coisa que tentamos provocar na relação com os municípios, para que eles se organizassem em arranjos ou como consórcios, pensarem em decisões mais colaborativas. Mas foi muito difícil.

Em Goiás, houve decisões baseadas em posicionamentos políticos. Prefeitos que tinham posições políticas diferentes das do governador ou do presidente da República adotaram medidas consonantes a essas posições. Houve esse tipo de interferência política na tomada de decisões durante a pandemia?

 Como não trabalhamos em um único estado, não entramos muito nessas questões, olhamos para necessidade dos estudantes. O que eu me lembro é que tinha uma tensão em relação ao retorno das aulas presenciais. Se a comunidade forçava a barra para o retorno, se retornava; se a comunidade não forçava a barra, não se retornava. Pegava mal politicamente. Essa era uma questão que a gente viu e foi muito ruim. Até hoje há escolas que não voltaram a abrir porque ainda não têm condições sanitárias, de ventilação. A gente brinca que, como tem a busca ativa escolar, devia ter a busca ativa de escola, porque tem escola que não voltou ainda. É um absurdo dos absurdos, porque teve dois anos para se adequar. Essas são questões bastante complicadas com as quais temos nos deparado. Goiás é um dos estados que têm escolas com bastante dificuldades para retornar integralmente. Tudo isso tem que ser colocado nessa análise do Ideb. Não dá para achar que esse resultado de fato está revelando tudo. Há municípios em que o Fundamental 2 e o Ensino Médio avançaram mais do que o Fundamental 1, ao contrário do que acontecia. Sempre avançava mais no Fundamental 1 e menos nas séries finais e no Médio. Podemos dizer que o Ensino Fundamental 2 melhorou muito? Não sabemos, porque tem a questão da taxa de aprovação. Era o segmento em que a taxa de reprovação era maior. Tem a questão da autonomia desses estudantes nos estudos a distância, que é bem diferente da dos estudantes do Fundamental 2. Talvez, os alunos do Fundamental 2 estiveram mais vinculados do que os do Fundamental 1. São questões que precisam ser pensadas a partir dos dados primários que esses municípios têm documentados e registrados desse período da pandemia.

A educação a distância vai avançar a partir dessa experiência implementada durante a pandemia?

Acho que não tem mais volta. Uma das aprendizagens que tivemos na pandemia foi o uso do recurso tecnológico, não para substituir professor, mas pensando nele como um outro meio de apropriação e de vinculação aos estudos e às aprendizagens e aos saberes. Acho que isso veio para ficar. Calculadora era uma coisa que não entrava e, hoje, não é impossível o celular estar dentro da escola. A professora fazia uso do celular dela para passar o vídeo, ficava todo mundo em cima do celular dela, e ela viu a potência que tem os conhecimentos, as informações e os saberes para além do livro didático. Eu acho que ainda precisamos de mais apoio público para a questão da internet porque muitas professoras usavam os dados pessoais da internet. É um absurdo, mas era o que o tinha e ela fazia o uso disso porque entendia a importância que isso teria para aprendizagem dos alunos. O fato de os professores terem aprendido muito, tiveram que aprender, que incorporar a tecnologia nas práticas profissionais, depois que aprende isso, não volta, não vai abandonar mais. Esse movimento não tem mais volta e acho que precisamos ter investimento para continuar seguindo, evoluindo, porque usamos durante a pandemia numa perspectiva de substituição, e, agora, temos o presencial. Como seria um meio complementar? E o papel que os estudantes começam a ocupar nesse processo é mais ativo, de mais protagonismo.

Antes da pandemia, a educação no Brasil já se encontrava estagnada. Tivemos um avanço importante nos anos 2000 e, a partir daí, estagnou. Quais teriam sido os fatores dessa estagnação?

Eu estava olhando inclusive os dados de Goiás, onde o Ideb começou em cerca de 2 pontos e melhorou muito. Eu acho que quando a situação estava muito ruim é rápida a melhora. Principalmente porque tinha uma questão que foi mais afetada que foi o índice de aprovação. Quando se começou a fazer a medição do Ideb, havia uma cultura muito grande de reprovação nas escolas do Brasil. Quando começou a se mexer nesse indicador, o resultado mudou rápido, mas não necessariamente porque os meninos estavam sendo aprovados e aprendendo. Por isso que agora estagnou. É preciso mexer na aprendizagem, nas profundezas e na complexidade de políticas públicas. E não é uma questão de ter apenas o transporte. É muito mais; mexer nas práticas dos professores, na formação desses professores. E não é mexer uma vez, é um contínuo. Por isso, falamos em formação continuada. As redes ainda precisam ter uma estrutura para essa formação. Muitos municípios acham que formação é chamar alguém de fora para fazer a formação em janeiro, em julho, em dezembro. Não é isso. Estamos falando de uma formação no contexto de trabalho, no interior da escola, com equipes, com coordenadores pedagógicos que cuidem desse professor, que ajudem a planejar junto. Estamos falando de mudanças muito estruturais e de cultura de desenvolvimento profissional.

O principal fator de avanço ou estagnação é o professor?

Não só, mas é também. O que falta talvez seja uma atuação mais sistêmica de todos os profissionais. Não adianta formar só o professor porque sozinho não muda uma instituição. Quando pensa a formação precisamos pensar a formação numa perspectiva sistêmica: o professor precisa ser formado, mas o coordenador pedagógico também precisa ser formado para formar o professor; alguém da equipe da secretaria também precisa ser formado para formar o coordenador pedagógico; e alguém da secretaria também precisa ser formado para formar o diretor da escola, que precisa ter preocupações como a gestão pedagógica da escola. Pensamos a formação numa perspectiva sistêmica, numa cadeia formativa colaborativa. A universidade também precisa e pode apoiar a formação de formadores dentro de uma rede de ensino para que não fiquem o tempo inteiro dependendo de consultorias externas que não conhecem quais são os problemas reais e, portanto, fica uma formação generalizada, que não trata das questões que são os problemas pedagógicos reais. Esse corpo precisa ser constituído. Professor que quer faz diferente, professor que não quer, não faz. E os alunos? Sorte de cair numa sala ou na outra sala? O diretor tem a responsabilidade de garantir que o projeto político pedagógico da escola seja garantido em todas as turmas, que o currículo seja garantido a todos do mesmo jeito. Ele também precisa ser formado para isso, não no sentido de fiscalizar, mas de pensar qual é a parte que lhe cabe nessa colaboração para o melhor trabalho do professor.

Aí caímos na questão da desigualdade educacional no Brasil. Não temos uma padronização nos modelos educacionais, na estrutura da escola, na formação dos professores. A federalização do Ensino Básico seria uma solução para essa desigualdade?

Antes do processo eleitoral estava tramitando, no Senado, o projeto de lei do Sistema Nacional de Educação, que podemos comparar, salvo suas diferenças, com o nosso sistema nacional de saúde. Em uma pandemia, qualquer cidadão pode ser vacinado, do Norte ao Sul desse país. Se não tivéssemos esse sistema talvez São Paulo tivesse vacinado mais porque o (ex-governador) João Dória acabou produzindo a vacina, e pode ser que houvesse algum estado hoje que não tivesse vacinado ninguém. Um Sistema Nacional de Educação cria um padrão de qualidade mínimo para todos os estados, assegurando condições para que esse padrão exista de Norte a Sul do país, mas também não deixa a coisa engessada no sentido de que não existam ajustes que possam ser feitos. Porque tudo igual para todos não vai servir. Precisamos ter um mínimo e na nossa Constituição está assegurado, pelo sistema federativo, que exista autonomia entre os entes e essa autonomia deve existir justamente para assegurar essa equidade. O Sistema Nacional de Educação, com as comissões e uma governança tripartite, asseguraria essa ida e essa vinda da política para poder pensar nesses ajustes. Eu, particularmente, confiaria muito em um Sistema Nacional de Educação e na construção desse padrão de qualidade mínima. Podemos ter uma política nacional que seja discutida nos estados e com seus municípios e que quando ela chegue dentro da escola ela esteja ajustada às condições daquela escola.

No Brasil, as políticas educacionais são personalistas, apesar de existir um Plano Nacional de Metas. Por que estamos sempre sujeitos às prioridades do governo do momento?

Nós temos esse plano, o PNE, o que falta é a gente fazer dele o instrumento da gestão. Esse plano se desdobrou em planos estaduais, que se desdobraram em planos municipais. Toda essa perspectiva sistêmica foi assegurada, só que ainda temos uma cultura pouco improvisada da educação. A gente faz como tarefa, mas não como um instrumento de gestão. Deveria ser o Norte e deveríamos voltar a ele para justificar qualquer programa de educação. Esse caminho de volta a gente deveria o tempo inteiro provocar como sociedade civil.

A meta 1 do PNE, relacionada à Educação Infantil, não deve ser atingida e o que se discute na campanha eleitoral, por exemplo, é escola de tempo integral, que não faz parte do PNE.

O PNE foi feito a partir de uma super consulta, mas faltou a mobilização da sociedade civil para esse plano porque é o que dá a musculatura para que ele continue vivo. Se você perguntar para qualquer pessoa quais são as metas que se tem para o Brasil em educação não serão todas as pessoas que sabem, e deveriam saber o que se planeja para educação desse país. Quanto mais apagadinho o plano estiver, mais invenções se podem criar sem estabelecer nenhuma relação, porque ninguém vai cobrar. Vemos, por exemplo, políticas do governo federal que não tem nada a ver com o PNE. Onde está o homeschooling dentro do plano? Completamente na contramão. Isso vai melhorar a educação básica? Não vai. O plano é bom, trouxe metas importantes para o desenvolvimento e para a melhoria da educação do nosso país. Isso revela que falta um plano de educação para esse país, estamos ainda engatinhando para de fato ter um plano de educação, saber que cidadão, que sociedade a gente quer, que brasileiro a gente quer daqui a dez anos.