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Entre gavetas e espelhos


Por Redação em 26/03/2018 - 00:00

Foto: Internet|

Da crise de identidade ao conflito de Ego

Quem eu sou? Quem somos de verdade?

Jorge Antônio Monteiro de Lima

A crise da pós-modernidade deflagra-se na imagem de um espelho que é suntuosamente ornado. Com moldura folheada a ouro, reluzente, presente no ponto central de uma sala de estar. Peça magnífica, principesca, mas que, todavia, perde-se em sua função. As imagens trazidas por este espelho não refletem mais, são opacas, distorcidas, borradas e, a bela peça que orna, perde sua serventia.

É com tal imagem que anuncio a crise presente na pós-modernidade, em que a distorção das imagens afeta nosso imaginário, crenças, valores, ideais, ideologia, rompendo a identidade, gerando uma crise de valores complexa e complicada. É a perda de identidade que se reflete em uma crise de ego, neurótica, instintiva, belicosa, já anunciada por Bauman ou Maffesoli… A crise no sentido de vida da individuação transformada em objeto na materialidade do mundo.

Você consegue se olhar nos olhos e se reconhecer no espelho?

A significativa ruptura é facilmente visível diante do relato de um amigo que flertava com uma conhecida na rede social. Enamorado de suas imagens, tantas eram suas fotos de beldade que ao conhecê-lá pessoalmente acreditou tratar-se de outra pessoa, tamanho díspar entre a imagem apresentada nas redes sociais e a imagem real. Uma pessoa, duas imagens totalmente diferentes: uma real, outra virtual. Retoques, photoshop, correção de maquiagem virtual, mudança de cenários, de percepções de vida… tantos entretantos e uma distância enorme de quem se era em verdade. O outro apresentado no virtual não condizia em nada com o real, o vivo, o do agora.

É o cenário de uma ilusão agenciada, pré-fabricada, socialmente aceita nos delírios e manias, distorcendo a existência. O desfiguramento gigantesco apresentado por Machado de Assis no conto “O espelho”, em parte traduziria nossa problemática, que reflete nossa necessidade de reconhecimento.

Notório que o rapaz citado, enamorado das imagens, frustrou-se diante da mulher real gigantescamente diferente da idealizada pela tecnologia… A mulher produto, vitrine, aparência distante da real,de carne e osso… desconcertada diante do outro que questionava quem ela realmente era? Narciso embebecido de seu próprio reflexo, achando feio o que não é espelho…

Hoje, em consultório, lidamos diariamente com a temática da crise do ego que apresenta dificuldades enormes de percepção para diferenciação entre o real e as ilusões. A sociedade vivencia uma crise de ego gigantesca com a ruptura da identidade, a exacerbação da Persona – máscaras sociais em detrimento do Ego. Muitas imagens e pouca essência. Muita ilusão e pouca realidade. Elementos que poderiam ser traduzidos como uma psicose coletiva.

A ilusão agenciada, delírios do cotidiano, hoje estão nas políticas de estado, nos processos legislativos, nos discursos ideológicos, na construção do fanatismo, na economia neoliberal do endividamento por linhas de crédito, em nossa vaidade e orgulho diárias, na teologia da prosperidade, no discurso religioso, nos ciclos de convívio social. O ser imagético deslocado de realidade representando uma gaveta sem chaves, escancarada, cheia de bagunças e misturas, de bocados que unidos não conseguem uma liga estrutural, pedaços, metades, um vão que não consegue ser preenchido.

Vivenciamos uma ampla crise de identidade, de humanidade, de ser, onde a Persona destitui o Ego e ignora o Self – o sentido de vida, a individuação. As altas crises de ansiedade da atualidade, depressão, tendência suicida fecham o diagnostico de um ser perdido, sem bússola, que quer chegar, todavia, sem saber onde. O destino maquiado por agenciamentos discursivos e superficiais cegando os que pouco querem ver ou perceber, mobilizados por instantes e superficialidade. Todavia, a crise deflagrada, evidente, torna-se epidemia.

A gaveta bagunçada escandaliza por que os problemas atuais exigem uma mudança de postura, a decantação entre realidade e fantasia. Caso contrário, sofrimento. E tratamentos necessários para se conter o caos já instalado…

Jorge A. Monteiro de Lima é analista, pesquisador em saúde mental, psicólogo clínico e mestre em Antropologia pela UFG.

 

 

 

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