Serena Joy é uma personagem peculiar do O Conto de Aia. Me veio a lembrança dela nos últimos dias após a fala de um certo candidato à prefeitura de São Paulo que afirmou com boca cheia que “mulher inteligente não vota em mulher”. Mas como Serena Joy se conecta ao cenário político das eleições municipais brasileiras?
Aquela é uma distopia, onde o masculino (e todos os estereótipos de gênero ligados a ele) é colocado como única opção de poder e autoridade e, a opressão de mulheres é a regra. Serena Joy é uma mulher empoderada, com vida pública, se alia aos homens para construir uma sociedade que oprime outras mulheres.
Ela pode ser associada a uma figura representativa de muitas mulheres da extrema direita brasileira. Discursos de Michelle Bolsonaro poderiam facilmente sair da boca de Serena Joy. Discursos abarrotados de falas antifeministas que tiram das entranhas da terra os absurdos de um passado (espero que distante) o qual mulheres não faziam parte da vida pública e eram consideradas seres sem a própria tutela perante o Estado.
Mas há de convir que analisar cenário é sempre enriquecedor e não faz mal nenhum ao cérebro. Apesar de avanços da ocupação em cargos de poder e tomada de decisão por mulheres, e do Brasil ter sido o primeiro país que nós de fato pudemos votar, o caminho para assumir palanques tem sido outro.
Os papéis de gênero ainda estão entranhados nesta sociedade, que vê mulheres como menos pertencentes aos cargos da esfera pública (isso também vale para além da política). É um emaranhado social que nos impõe ao papel exclusivo de cuidadoras de casa, da família, da vida privada. Para isso, barreiras são constantemente elaboradas e reconfiguradas para manter as mulheres fora da vida pública.
Não é sem razão que neste pleito, do total de candidatos e candidatas às prefeituras, apenas 15% sejam mulheres, mesmo que sejamos 52% da população brasileira e do eleitorado em terras tupiniquins.
Romper com o discurso social arraigado de que “lugar de mulher não é na política” exige muito esforço, diria que resiliência, tempo de vida e, saúde física e mental. Afinal, essas mulheres tendem a continuar com os mesmos papéis que a vida privada exige, afazeres da casa e dedicação à maternidade.
É malabarismo estar e continuar ali. Malabarismo que não tende a ser executado por homens. Eles continuam no espaço que já lhes é apontado como direito. Elas que estariam em um local não pertencente e, por isso, teriam que dar conta de todos os afazeres da vida pública e ainda desempenhar seu papel de gênero na vida privada.
Essa estrutura de barreiras não é só imaginária, ela também física. Um exemplo que sempre me incomoda é o do banheiro ao lado do plenário do Senado. Só em 2016 foi construído um banheiro para as senadoras. A fisiologia delas não era tida como importante, já que ali, não era para ter mulheres. Não podemos esquecer o desconforto causado quando uma mulher leva uma criança ao plenário. Se houver amamentação, então, o assunto vira um debate público.
O ambiente partidário também reforça essa exclusão. Ele ainda é repleto de uma figura homogênea, homens, brancos e ricos. Não esqueçamos os ternos, nem sempre bem cortados. Partidos estruturam suas bases para que mulheres sejam as primeiras-damas ou talvez, quem sabe, com muito “esforço e paciência” e com um homem que a valide, uma vice. Estratégia mais voltada à conquista de eleitorado feminino do que propriamente a contemplação de pautas direcionadas às mulheres.
Além de esbarrar na estrutura partidária, elas encontram a violência de gênero, antes na esfera privada, agora, reconfigurada para a vida pública. Xingamentos, invalidação, importunação sexual são apenas alguns dos inúmeros exemplos da violência política de gênero a que elas estão submetidas.
Violência esta que dificulta a entrada delas na polícia e sua escalada a cargos de mais evidência. Afinal, ouso afirmar que nenhuma de nós gostaria se ter sua figura atrelada a imagem de uma violação sexual feita por uma mangueira de tanque de combustível, como já vimos em 2013 em tantos carros por aí.
Há de se ponderar políticas públicas e iniciativas da sociedade civil movidas para combater esta redoma masculina da política. Porém, há de considerar que só na candidatura não há efetividade da democracia em sua plenitude. Nela todos, todas e todes deveriam estar posicionados e posicionadas em setores de poder e tomada de decisão para a melhor garantia da visão do que de fato é a população brasileira, não só masculina, não só branca, não só cisgênero. Inclusive que dê conta da diversidade de mulheres, no plural.
Mas na hora no voto, aquela que está você está sozinho, sozinha, você vota em mulheres? Uma pesquisa realizada pela Datafolha, detalha 24% das entrevistadas tendentes a votar em outras mulheres pelo fato de serem mulheres. Entre os homens, apenas 14% declararam essa intenção de voto.
Não me sinto à vontade em cobrar das minhas iguais o voto em mulheres, apenas por serem mulheres, nem mesmo evocar a palavra que tanto gosto, sororidade. Há de convir que tem muita mulher que não defende a pauta de direitos equânimes, assim como Serena Joy. Ela não votaria em mulheres. Não por não ser inteligente. Mas por não se identificar com as suas iguais. A reviravolta é que ela também estaria neste novo mundo o qual ela desenhou ao lado dos homens e, foi posto na mesma roda de opressão. Afinal, ela não era um deles.