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Artigo | Auxílio Brasil: nova roupagem, velhas práticas


Avatar Por Redação em 10/09/2021 - 00:00

No dia 9 de agosto, o presidente Jair Bolsonaro entregou ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a Medida Provisória (MP) n. 1061/21, que modifica o programa Bolsa Família. Ocorre que as alterações impostas sem qualquer diálogo nas instâncias das políticas envolvidas, notadamente as de Assistência Social e Educação, prometem um enfraquecimento, ainda maior, das políticas sociais, descaracterizando um programa já amplamente avaliado, além de resgatar a velha fórmula da meritocracia e da demagogia. Tudo isso em meio a uma das maiores crises humanitárias, com diversas consequências sociais, pelas quais já passamos.

A MP altera o programa Bolsa Família ao criar uma “cesta” de auxílios que mascaram a ausência de recursos para a necessária instituição de um programa amplo de renda básica, com a adoção de estratégias de priorização da população mais vulnerável em resposta às demandas sociais agravadas pela situação de emergência provocada pela pandemia de Covid-19. A real ampliação do Bolsa Família demandaria uma decisão de governo voltada à imediata ampliação da cobertura, pelo menos nos patamares atingidos com o Auxílio Emergencial, considerando a situação de profunda precarização das condições de vida da população trabalhadora. Também seria necessário um financiamento público condizente com a realidade social, o que inevitavelmente requer a garantia da sustentabilidade do conjunto de sistemas públicos.

Os auxílios e bônus, justificados como formas emancipatórias das famílias e jovens, ocultam, na verdade, a imposição de uma concepção retrógrada, preconceituosa e descontextualizada de política social. Segunda tal concepção, a população beneficiária se “acomoda”, cabendo ao governo um “empurrão”, com a criação das chamadas “portas de saída”. Saída para onde? Onde estão as “oportunidades” de trabalho, emprego e renda para que a população saia do programa?

Além das alterações conceituais, da “compra” de vagas para as creches – em detrimento da definição de um orçamento que fortaleça e universalize a educação infantil –, da instituição de auxílios vinculados ao mérito e ao esforço individual de jovens – num contexto de sucateamento e desfinanciamento das políticas sociais –, ficou definido, por meio de outra MP (nº 1045/21), a instituição do Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que representa uma verdadeira violação dos direitos da juventude, tão impactada pela pandemia.

O programa de manutenção de empregos propõe que o jovem se submeta a uma condição de indignidade, pois estabelece uma nova modalidade de trabalho para cidadãos de 18 a 29 anos que afronta a legislação e os direitos da juventude, desprotegida pelo Estado. Nessa modalidade, o jovem não tem nenhum tipo de vínculo empregatício e não recebe salário, mas um “bônus de inclusão produtiva” e uma “bolsa de incentivo à qualificação”, remunerados pelo empregador, ambos com valor máximo de R$ 275. O gozo de férias é trocado por um recesso parcialmente remunerado, o vale transporte não será pago integralmente e não há recolhimento previdenciário, o que compromete o direito social à Previdência Social, especialmente em relação à aposentadoria.

Sobre o Auxílio Brasil, convém também falar que o Governo Federal insiste na proposta de acesso via aplicativo, a exemplo do Auxílio Emergencial. A defesa da “utilização da tecnologia da informação como meio prioritário de identificação, inclusão e emancipação cidadã dos beneficiários” desconsidera as dificuldades da população. Aqui, toda a rede de serviços de Assistência Social é invisibilizada, encontrando sintonia com as medidas de retirada sistemática de recursos para a sustentabilidade do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e demais sistemas públicos por meio da Emenda Constitucional n. 95/16 (a do teto dos gastos) e pela total ausência de medidas que garantam, ao menos, a manutenção dos sistemas públicos.

O Governo Federal optou por um caminho perigoso diante do grave cenário social, que desmonta os sistemas públicos; dificulta a operacionalização de um programa de transferência de renda, embutindo políticas que se submetem aos auxílios pontuais; não garante sustentabilidade financeira ao prever sua implantação residual por meio dos recursos de pagamento de precatórios e privatizações, dando sequência a uma agenda ultraneoliberal que se mostrou falida na pandemia;  constrói um desenho complexo de programa ao incorporar diversas agendas de modo improvisado, distanciando-se da realidade concreta da população e dos municípios. Por isso, o programa tende ao fracasso, já que busca o caminho da precarização das condições de trabalho, do endividamento das famílias e de um esforço individual para a busca de trabalho formal que só vai ser resgatado com políticas econômicas e sociais efetivas.

pandemia no Brasil fez com que 13% dos trabalhadores ocupados no primeiro trimestre de 2020 se vissem sem ocupação no segundo trimestre, sendo que os mais afetados foram, justamente, os mais vulneráveis. Entre os que recebiam até um salário mínimo, 23% estavam sem ocupação no segundo trimestre do ano passado. Importante observar que 31% dos trabalhadores domésticos perderam sua ocupação, assim como 23% dos empregados do setor privado sem carteira assinada. Negros perderam a ocupação em proporções superiores aos brancos: 15% contra 10%. As mulheres também foram mais impactadas pela crise: 15% perderam seu trabalho versus 11% dos homens, entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020.

Acessar renda nesse contexto de choque e emergência significa, inclusive, mitigar os efeitos da crise, a situação de desemprego e a precarização das condições de vida, fatores que estão sendo agravados pelos efeitos sociais das reformas adotadas, como a vigência de contratos intermitentes que fragilizam ainda mais os vínculos de trabalho. Vivenciamos um contexto de aumento do desemprego e do trabalho informal, o que por si só já justificaria a ampliação do Bolsa Família, aproveitando suas tecnologias e seu modelo federativo de governança, além da devida destinação de recursos suficientes para ampliar sua escala, por meio de um piso emergencial, como propõe a Coalizão Direitos Valem Mais.

Emprego não é uma questão de esforço e de mérito individual. Transferência de renda não se constitui em benesse do governo. Em um contexto de profunda crise como o que estamos vivendo, não há espaço para demagogia e ilusões. É necessário restabelecer a capacidade institucional do Estado de responder às crises e reduzir desigualdades, o que demanda a inversão de prioridades e garantia de um padrão universal, público, distributivo e democrático de proteção social, com reformas e políticas que efetivamente coloquem a vida e a dignidade acima de tudo.

*Jucimeri Isolda Silveira é professora Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas (PPGDH) e do curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). 

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