Nem todo rio tem água. Alguns nascem do chão rachado, das memórias do subúrbio e das cores que resistem ao apagamento. É desse lugar que emerge Genor Sales, artista visual goiano que transforma vivência, deslocamento e afeto em aquarelas que hoje circulam entre feiras internacionais, coletivos artísticos e exposições no Brasil e fora dele.
Criado na periferia de Goiânia nos anos 1980, Genor cresceu entre terrenos baldios, ruas de barro e liberdade improvisada. A infância sem moldura moldou também seu olhar: a rua era palco, a imaginação era brinquedo. Entre pipas feitas à mão e o rádio ligado na cozinha, onde sua avó nordestina escutava Luiz Gonzaga, Genor aprendeu a ver o mundo com outros sentidos, os da oralidade, da ausência e da invenção.
Desde cedo, o corpo negro que habitava esse espaço sentia o peso do estranhamento, mesmo sem saber ainda o nome da exclusão. Foi o hip hop que lhe deu linguagem: aos dez anos, ouvindo “Pânico na Zona Sul”, dos Racionais MC’s, compreendeu que o silêncio vivido por muitos nas periferias podia, sim, ser traduzido em discurso. Ali começava sua formação política, estética e coletiva.
Entre o traço e a travessia

Antes da arte como profissão, vieram os cadernos, os nomes desenhados em papel sulfite, a caligrafia transformada em traço. Ainda hesitante com as cores, Genor desenhava em preto e branco, mundos inteiros criados com canetas e imaginação. Tentou seguir pela engenharia elétrica, buscando estabilidade. Mas era a arte, sempre por perto, que o convocava.
Foi já adulto, na casa dos 30 anos, que ingressou na Faculdade de Artes Visuais da UFG. Chegou durante a pandemia, quando as aulas eram remotas e os rostos distantes. Mesmo assim, tornou-se voz ativa: ajudou a reformular a grade curricular e propôs a criação de uma disciplina de história da arte afro-brasileira e indígena, hoje incorporada oficialmente ao curso.
A escolha pela licenciatura veio com propósito: Genor queria ser educador. Mais do que criar, ele queria partilhar saberes, atravessar o sistema da arte por dentro, sem se curvar a ele. A aquarela, com sua transparência e fluidez, se tornou sua linguagem de corpo, pensamento e resistência. O gesto sutil da tinta sobre o papel dizia o que o mundo, muitas vezes, recusava ouvir.
Peixes fora d’água, rios por dentro

Foi no coletivo Sertão Negro, idealizado pelo artista Dalton Paula, que sua produção encontrou abrigo e expansão. Ali, entre aulas de cerâmica e trocas com outros artistas racializados, Genor passou a elaborar com mais nitidez o que já intuía: sua arte era também denúncia, travessia e afeto.
O peixe, figura constante em sua obra, representa esse deslocamento. Desde criança, era fascinado por aquários, tanques e peixarias. A metáfora do “peixe fora d’água” se consolidou como símbolo do corpo negro em espaços de não pertencimento. Com aquarela, ele reconstrói esse corpo: ora vulnerável, ora político, sempre vivo.
Em suas obras, a sardinha da cesta básica vira protagonista. O bacalhau europeu é substituído pelo piau do Cerrado. Cabeças de peixe descartadas aparecem como denúncia da lógica que despreza o que não é nobre. A alimentação vira linguagem visual. A ausência de nutrientes, metáfora de um apagamento estrutural.
Com os pés em água firme

Hoje representado pela Cerrado Galeria e indicado ao Prêmio PIPA, Genor tem atravessado fronteiras com a delicadeza de quem sabe que arte não é atalho, mas resistência. Aprendeu os bastidores, escreveu textos curatoriais, montou estandes. Mas aprendeu o essencial: transformar vida em linguagem.
Para ele, o processo criativo começa antes do papel: nasce em cadernos de artista, em lembranças da infância, em registros guardados com cuidado. Há sempre música, sempre leitura. A literatura marginal e os versos do rap alimentam o gesto que escorre no pincel. Seus corações feitos de ruas e veias são mapas afetivos, cartografias da memória.
Genor sonha com um mundo onde a arte seja ponte, não privilégio. Onde as meninas do interior e os meninos da periferia possam se reconhecer nas imagens. Onde o peixe, enfim, encontre sua água. E onde os rios, mesmo invisíveis, continuem correndo, dentro e fora da pele.