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“As apostas do Bolsa Família”


Luciano de Paula Cardoso Queiroz Por Luciano de Paula Cardoso Queiroz em 20/12/2024 - 06:00

O Bolsa Família é o maior programa de distribuição de renda do mundo, mas enfrenta críticas sobre dependência, uso e impactos sociais. Foto: Lyon Santos/ MD

O Bolsa Família registrou, em setembro de 2024, 20,71 milhões de famílias contempladas nos 5.570 municípios brasileiros. O número total de pessoas beneficiadas diretamente é de 54,3 milhões de brasileiros e o volume de recursos utilizados chega a 14 bilhões anualmente.

O Bolsa Família é amplamente reconhecido como o maior programa de distribuição de renda do mundo. Criado em 2003, seu objetivo central era reduzir a pobreza e promover a inclusão social, transferindo recursos financeiros às famílias em situação de vulnerabilidade econômica, com condicionantes relacionadas à educação e saúde, porém tem falhado no alcance dos objetivos propostos.

A afirmação de que o programa seria um “instrumento de compra de votos institucionalizado” é um argumento controverso e polarizador. Seus críticos apontam que o impacto político do programa, especialmente em regiões mais carentes, favorece candidatos que o defendem ou ampliam. Por outro lado, defensores destacam que essa é uma política pública e tem resultados comprovados na redução da pobreza extrema e na melhoria de indicadores sociais.

Discussões sobre o tema devem considerar tanto os resultados sociais e econômicos como os aspectos éticos e políticos, analisando dados concretos e respeitando diferentes perspectivas.

Há argumentos de que o programa incentiva o ingresso, mas não a saída das famílias beneficiadas, perpetuando uma situação de dependência e, portanto, limitando a promoção da autonomia e dignidade social. A crítica central é que a transferência de renda, embora paliativa e essencial para suprir necessidades básicas e urgentes, não oferece mecanismos suficientes para que os beneficiários superem sua condição de pobreza, sendo este um ponto estrutural e deficiente a ser analisado.

As dificuldades estruturais do programa, que embora eficaz para combater a pobreza extrema no curto prazo, demonstra a falta de complementos robustos, como capacitação profissional, geração de empregos e estímulo ao empreendedorismo, o que leva a reduzir as possibilidades de ascensão social, causa estagnação e fomenta um circulo vicioso.

A proposital baixa fiscalização do programa e as fraudes na inclusão de beneficiários que não se enquadram nos critérios do programa enfraquecem sua legitimidade e eficácia, desviando recursos de quem realmente necessita.

Existem também questões regionais, posto que em locais com poucas oportunidades de emprego e desenvolvimento econômico, as condições para saída do programa são ainda mais limitadas, devendo o Estado levar a essas regiões condições dignas de emprego e renda.

Porém, é inegável que o programa define uma base de sustentação social, eis que é uma ferramenta de justiça social, garantindo um mínimo de dignidade às famílias mais vulneráveis. Além disso, o Bolsa Família tem metas relacionadas à educação e saúde, como a obrigatoriedade de frequência escolar e vacinação, que promovem desenvolvimento humano e social no longo prazo.

Para que o programa gere mais dignidade social, seria necessário complementá-lo com políticas ativas de emprego via programas de capacitação profissional alinhados às demandas do mercado local; investimento sério e eficaz em educação de qualidade, rompendo ciclos de pobreza por meio da educação; criar critérios de saída do programa, implementando mecanismos claros e graduais incentivando a transição de beneficiários para a autonomia financeira.

A falta de controle sobre o programa levanta questões para além das já mencionadas, posto que a utilização, sem critérios, dos valores disponibilizados pelo programa incentiva desvios e gera sérias preocupações, como, por exemplo, a utilização dos recursos em prol de jogos on line, fato que tem preocupado o Governo.

Para se ter uma ideia do caus, somente em agosto de 2024 os beneficiários do Bolsa Família gastaram mais de 3 bilhões reais com apostas online. De acordo com o documento do Banco Central, a média gasta pelos beneficiários do programa social com as apostas no período foi de R$ 100. Dos apostadores, 4 milhões (70%) são chefes de família (quem de fato recebe o benefício) e enviaram R$ 2 bilhões (67%) por PIX para as bets.

O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou recentemente que o Governo Federal adote medidas para impedir o uso de recursos do programa Bolsa Família em apostas on line. A decisão visa garantir que os benefícios sociais sejam utilizados para sua finalidade original: o sustento básico das famílias em situação de vulnerabilidade.

A preocupação com o desvio de recursos públicos para atividades de apostas não é infundada. Relatórios indicam que uma parcela significativa dos beneficiários do Bolsa Família tem direcionado parte dos recursos recebidos para plataformas de apostas on line, comprometendo a segurança financeira de suas famílias e incentivando o circulo vicioso de permanência no programa.

No entanto, a decisão do TCU é de difícil execução, pois implementar mecanismos que impeçam o uso de recursos do referido programa em apostas on line enfrenta desafios significativos. As plataformas de apostas operam predominantemente no ambiente digital, muitas vezes sob jurisdições internacionais, o que dificulta a fiscalização e o controle por parte das autoridades brasileiras.

Além disso, a rastreabilidade dos recursos após o saque pelos beneficiários é limitada. Uma vez que o dinheiro é retirado em espécie ou transferido para contas bancárias, torna-se praticamente impossível monitorar seu destino final sem infringir direitos de privacidade e liberdade individual.

A tentativa de restringir o uso de benefícios sociais em apostas on line também levanta questões sobre a eficácia de políticas proibitivas. Sem uma abordagem abrangente que inclua educação financeira, apoio psicológico e medidas de prevenção ao vício em jogos de azar, as restrições podem apenas deslocar o problema, levando os indivíduos a buscar alternativas informais ou ilegais para satisfazer o desejo de apostar.

Em países desenvolvidos, a abordagem ao jogo de azar geralmente combina regulamentação rigorosa com programas de apoio ao jogador, campanhas de conscientização pública e recursos para tratamento de dependência. No Brasil, a recente regulamentação das apostas esportivas on line busca estabelecer um mercado mais seguro e transparente, mas ainda há um longo caminho a percorrer para se alcançar um equilíbrio eficaz entre liberdade individual e proteção social.

O Bolsa Família é uma ferramenta indispensável para mitigar a pobreza extrema, mas enfrenta limitações estruturais que podem, de fato, gerar dependência em vez de emancipação e ainda enfrenta problemas de desvio de finalidade dos recursos disponibilizados. Uma reforma focada na inclusão produtiva, em conjunto com uma análise crítica sobre sua aplicação e fiscalização, pode garantir que o programa alcance seu objetivo de forma mais eficiente e promova a verdadeira dignidade social.

Luciano de Paula Cardoso Queiroz

É advogado inscrito na OAB/GO. Ex-membro do Conselho Deliberativo do Instituto Goiano do Direito do Trabalho – IGT. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/GO. Membro do Instituto Goiano do Direito do Trabalho. E-mail: [email protected].