Comemorado hoje em 20 de junho, o Dia Mundial do Refugiado é uma data que deveria nos levar à reflexão profunda — não sobre uma celebração vazia, mas sobre uma das mais pungentes expressões do fracasso humano: a incapacidade de garantir paz, justiça e dignidade para todos. As cicatrizes da guerra vão além de fronteiras políticas e atravessa a dignidade humana. Longe de ser apenas um marco no calendário da ONU, o dia escancara a face cruel de um mundo que, em pleno século XXI, ainda assiste passivamente à repetição de tragédias movidas por ganância, poder político e interesses geoestratégicos mascarados de ideologia ou religião.
O cenário contemporâneo é marcado por um novo ciclo de sofrimento. A recente escalada do conflito entre Irã e Israel reacende não apenas o temor de uma guerra regional de proporções incalculáveis, mas também o aumento brutal no número de deslocados — pessoas que, em meio à fumaça dos bombardeios, veem ruir suas casas, escolas, sonhos e identidades. De um lado, um regime teocrático autoritário; do outro, um governo cada vez mais militarizado, cujas ações se confundem com retaliações desproporcionais. No meio, está o povo — indefeso, descartável, silenciado.
Mas o drama dos refugiados não se limita ao Oriente Médio. A guerra na Ucrânia, os conflitos étnicos no Sudão, a repressão brutal no Afeganistão, a crise migratória na Venezuela e os inúmeros deslocamentos forçados na África Subsaariana e na Ásia Central compõem um triste mosaico de realidades paralelas, todas com um denominador comum: a violação sistemática dos direitos humanos em nome de projetos políticos autoritários e expansionistas.
De acordo com dados recentes do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), mais de 120 milhões de pessoas estão deslocadas de suas casas em todo o mundo — o maior número já registrado na história moderna. Entre essas, mais de 40 milhões são refugiadas reconhecidas, ou seja, forçadas a cruzar fronteiras internacionais para escapar de perseguições, guerras ou catástrofes.
Os números chocam, mas raramente comovem. Segundo o relatório de junho de 2024 do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), o mundo alcançou um patamar histórico e alarmante: mais de 120 milhões de pessoas estão deslocadas à força de suas casas — o maior número já registrado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Desse total:
• 43,3 milhões são considerados refugiados reconhecidos (cruzaram fronteiras para escapar de guerras ou perseguições);
• 62,6 milhões são deslocados internos (forçados a abandonar suas casas, mas ainda dentro de seus próprios países);
• 6 milhões são requerentes de asilo aguardando resposta;
• 8 milhões são considerados apátridas.
As guerras recentes e em curso explicam grande parte desse aumento:
• Síria (desde 2011): Mais de 13,5 milhões de sírios foram forçados a deixar seus lares. Cerca de 6,8 milhões vivem como refugiados em outros países, especialmente na Turquia, Líbano e Jordânia. Outros 6,7 milhões permanecem como deslocados internos.
• Ucrânia (desde 2022): A invasão russa provocou uma das mais rápidas crises de deslocamento da história recente: Mais de 6 milhões de ucranianos buscaram refúgio fora do país; Cerca de 5 milhões permanecem deslocados internamente; Estima-se que 90% dos refugiados ucranianos são mulheres e crianças.
• Afeganistão: Após a retomada do poder pelo Talibã em 2021, mais de 3,3 milhões de afegãos tornaram-se deslocados internos e outros 2,7 milhões vivem como refugiados, principalmente no Irã e no Paquistão.
• Venezuela: A crise humanitária e econômica gerou o segundo maior êxodo do mundo, mais de 7,7 milhões de pessoas deixaram a Venezuela desde 2014;
O Brasil abriga cerca de 485 mil venezuelanos, a maioria em situação de refúgio ou migração humanitária.
• Sudão e Sudão do Sul: Conflitos armados e crises civis geraram mais de 4,5 milhões de refugiados entre ambos os países, além de milhões de deslocados internos.
• Faixa de Gaza e conflito Israel x Hamas (2023-2024): Com a intensificação dos ataques e bloqueios, estima-se que mais de 1,7 milhão de palestinos estejam deslocados, o que corresponde a quase 80% da população de Gaza, segundo dados do Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários (OCHA).
Embora ainda não se configure em guerra aberta e declarada, a escalada recente de ataques e retaliações entre Irã e Israel já provoca migrações preventivas e crescimento do número de requerentes de asilo de nacionalidade iraniana e síria, especialmente na Europa, conforme registros do Conselho Norueguês para Refugiados (NRC).
Esses números não são apenas estatísticas. Representam vidas fragmentadas, famílias separadas, infâncias roubadas e identidades diluídas pela brutalidade de um sistema internacional que permite que o poder político, a geopolítica e o lucro caminhem sobre corpos inocentes.
De cada dez refugiados no mundo, oito são acolhidos por países em desenvolvimento, e mais da metade são crianças. A desigualdade no acolhimento é gritante. Enquanto países como Alemanha, Turquia e Colômbia assumem parte expressiva do fardo humanitário, outras nações erguem muros, endurecem políticas migratórias e alimentam discursos de intolerância.
Os números chocam, mas raramente comovem. Na prática, o refugiado é tratado com indiferença por políticas de Estado, hostilidade por parte de populações locais e invisibilidade social. Chegam a países desconhecidos com pouco mais que a roupa do corpo, enfrentando barreiras linguísticas, legais, econômicas e culturais, além de preconceitos alimentados por discursos populistas e xenofóbicos que se espalham mundo afora.
Além da perda material, os refugiados enfrentam o esfacelamento emocional: deixam para trás a terra natal, suas tradições, sua rede de apoio, e com frequência, seus familiares. Carregam traumas que os acompanharão por toda a vida, cicatrizes de uma violência que lhes foi imposta sem escolha. Não são migrantes econômicos. São sobreviventes.
A origem da maior parte dos fluxos migratórios forçados contemporâneos está na conjugação entre regimes autoritários, instabilidade geopolítica e corrupção estrutural dos sistemas de poder. A guerra, nesse contexto, é quase sempre consequência da tentativa de manutenção do domínio de poucos sobre muitos. Os líderes decidem; os inocentes fogem, sofrem e morrem.
A ganância por recursos, por influência política e por controle territorial transforma populações civis em danos colaterais. Não há inocência nas guerras modernas. As bombas que caem sobre hospitais, escolas e bairros residenciais não são erros de cálculo: são estratégias de dominação, de desumanização.
O Brasil, historicamente um país de imigrantes e refúgio, vive o dilema da incoerência: embora tenha políticas públicas reconhecidas internacionalmente, como a Lei nº 9.474/1997, que define mecanismos para a concessão de refúgio, o sistema de acolhimento ainda é burocrático, precário e subfinanciado.
Refugiados venezuelanos enfrentam discriminação e exploração no Norte do país; sírios e afegãos, embora em menor número, enfrentam o desafio da revalidação de diplomas e acesso ao mercado de trabalho. O acolhimento existe, mas o pertencimento pleno é uma ilusão distante.
No fim das contas, o refugiado é a prova viva de que falhamos como civilização. Cada criança síria sem escola, cada idoso ucraniano em um campo de deslocados, cada mulher afegã que foge da opressão é o espelho da nossa omissão.
O Dia Mundial do Refugiado deve ser menos sobre solidariedade retórica e mais sobre enfrentamento estrutural das causas que obrigam pessoas a deixarem suas casas. Significa reconhecer que enquanto houver guerra, perseguição e fome — frutos quase sempre da ganância política e da corrupção institucionalizada — haverá exilados da dignidade humana.
Mais que lembrar, é preciso agir. Garantir direitos. Humanizar fronteiras. E entender que ninguém deixa o próprio lar por vontade. Eles fogem porque a vida ficou impossível. E nós, que ficamos, temos o dever moral e civilizatório de não permitir que o sofrimento continue invisível.