Carla Borges
O caso recente da mulher de 34 anos que ficou mais de 100 dias presa preventivamente por furto de água e que só foi libertada depois de um habeas corpus concedido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), chamou a atenção e provocou debates sobre o absurdo de uma situação assim chegar à mais alta corte do país. Embora não haja estudos ou estatísticas para dar uma estimativa numérica, é fato que os chamados furtos famélicos, cometidos por quem tem fome ou sede, têm aumentado na mesma proporção em que o Brasil afunda na crise econômica e política. A Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE) estima que 20% das audiências de custódia atendidas pelo órgão, no período de julho a outubro deste ano, são desse tipo de fato.
Afinal, o furto cometido nessa situação é crime e deve ser punido? “Não”, responde o advogado criminalista Rodrigo Lustosa, professor de Processo Penal e mestre em Direitos Humanos. “O artigo 23 do Código Penal diz que ‘não há crime quando o agente pratica o fato, inciso I (primeira hipótese): em estado de necessidade’. E o estado de necessidade é, portanto, uma excludente de ilicitude”, explica, com a didática adquirida em anos de magistério e de atuações em tribunais do júri. Isso significa, esclarece Lustosa, que uma conduta que seria pela lei incriminada, se for praticada por alguém que se encontra em estado de necessidade, não constitui crime.
“Essa é a precisa situação do chamado furto famélico, ou seja, a pessoa que comete um ataque contra o patrimônio de alguém para saciar a própria fome ou a de terceiros – é importante destacar: sem violência ou grave ameaça. Essa pessoa está seguramente acobertada pelo estado de necessidade e isso não constitui crime no nosso ordenamento jurídico”, assevera Lustosa. “Se não há crime, o Estado policial, o Estado juiz, o Ministério Público, que é o titular da ação penal, não poderia agir em vista de acontecimentos dessa natureza”, conclui.
Na prática, no entanto, não é assim que as coisas acontecem. E com grande frequência. “Em alguns casos, lamentavelmente não tão raros assim, há um mau uso do sistema de justiça. É a utilização do sistema criminal para marginalizar ainda mais a pobreza”, analisa o advogado. “E o juiz, embora busque sempre a imparcialidade – e é bom que seja assim – não é imune às ideologias, convicções. Vivemos em um ambiente social em que o discurso punitivista é extremamente forte e inclusive rende votos, e muitos”, pondera Lustosa.
Para ele, falta um resgate do direito, da legalidade vigente pelo sistema de justiça. “O texto da lei, claro, é aberto, é passível de ser interpretado, mas isso tem limite. O direito tem categorias, linguagens, técnicas interpretativas que, se corretamente buscadas, jamais permitiriam algo assim. Ao contrário disso, outros ingredientes estranhos ao sistema de justiça são levados em conta, o que permite criminalizar a pobreza, mesmo que essa conduta se constitua em autêntico abuso do poder constituído, utilização do poder como uma ferramenta de arbítrio contra o outro.”