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“Anistia: entre o perdão e a inversão da lógica jurídica”


Por em 11/04/2025 - 07:32

A anistia é um conceito jurídico que consiste na extinção de um determinado crime ou pena, concedida por um ato do poder público, geralmente por meio de leis ou decretos. Este instituto tem sido utilizado ao longo da história como uma forma de reconciliação nacional e de pacificação social, permitindo que indivíduos ou grupos sejam perdoados por crimes cometidos, especialmente em contextos políticos.

No plano jurídico, a anistia é caracterizada como o perdão estatal concedido a autores de infrações penais, tendo por efeito a extinção da punibilidade. Trata-se, portanto, de uma medida excepcional, que só se aplica após a constatação da ocorrência de um crime. A doutrina penal é unânime: não há como perdoar juridicamente um fato que ainda não foi reconhecido como criminoso ou sequer apurado nos rigores do devido processo legal.

Nesse sentido, o renomado jurista e penalista Cezar Roberto Bitencourt ensina que: “A anistia pressupõe a existência de crime. Ela não declara o réu inocente, mas extingue os efeitos penais da conduta típica e punível.”

Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou em reiteradas oportunidades que a anistia não equivale a absolvição, tampouco é instrumento político desvinculado do processo penal. A anistia, seja concedida por lei ou por ato do Estado, não apaga a existência do crime, mas apenas exclui a sanção penal aplicável, por razões superiores de ordem política, institucional ou humanitária.

Em momentos de comoção política, polarização social ou rupturas institucionais, o tema da anistia ressurge no debate público com força e urgência. Porém, o uso indiscriminado e, por vezes, ideológico do termo tem distorcido seu verdadeiro significado jurídico e histórico. É preciso lembrar: Anistia é perdão, e só há perdão onde há culpa reconhecida. A tentativa de conceder ou solicitar anistia sem que haja sequer a caracterização formal de crime ou sua devida condenação é, além de juridicamente incongruente, um desrespeito à lógica do Estado de Direito.

Assim, causa estranheza – e mesmo perplexidade – o surgimento de discursos políticos que defendem a anistia antes mesmo da existência de sentença penal condenatória, ou que desejam fazer dela um ato de inocência prévia, invertendo completamente os marcos do processo penal. Perdoar quem sequer foi julgado ou confessou o crime é, na essência, negar o próprio sentido do perdão. Mais do que isso: é admitir a impunidade pela via da anistia, subvertendo sua natureza jurídica e histórica.

O perdão – seja religioso, moral ou jurídico – exige reconhecimento de culpa. A anistia, como manifestação do perdão estatal, somente pode existir após o reconhecimento formal de que houve infração penal, e que, por razões maiores, o Estado opta por não punir. Não se trata de um salvo-conduto preventivo, tampouco de um atalho para a absolvição.

Se a anistia se transforma em instrumento político de blindagem prévia, perde sua legitimidade histórica e, pior, enfraquece a autoridade do sistema de Justiça. Abre-se, então, um perigoso precedente: o de se institucionalizar o perdão antes do crime, e o de se decretar a paz sem reconhecer o conflito – algo inaceitável em qualquer regime jurídico que se pretenda minimamente democrático e constitucional.

A palavra “anistia” deriva do grego “amnestía”, que significa “esquecimento” ou “perdão”. O conceito de anistia remonta à Grécia Antiga, onde era utilizado para promover a paz entre cidadãos e cidades-estado. Na Roma Antiga, a anistia também era empregada para perdoar inimigos políticos e garantir a estabilidade do império.

Na Grécia Antiga, a anistia era frequentemente utilizada para encerrar conflitos internos e restaurar a harmonia. Um dos exemplos mais conhecidos ocorreu em Atenas, após a queda dos Trinta Tiranos em 403 a.C. A democracia foi restaurada e uma anistia geral foi decretada, permitindo que os antigos apoiadores do regime oligárquico voltassem à vida pública sem temor de represálias.

Em Roma, a anistia era praticada como parte da política de clemência dos imperadores. Um exemplo notável foi a anistia concedida pelo imperador Augusto, após sua vitória na batalha de Ácio em 31 a.C. Augusto perdoou seus adversários políticos, incluindo aqueles que apoiaram Marco Antônio, como parte de sua estratégia para consolidar o poder e garantir a paz no império.

Ao longo dos séculos, a anistia tem sido utilizada em diversos contextos históricos, muitas vezes em situações de transição política ou social. Alguns momentos marcantes incluem: a Revolução Francesa, onde várias anistias foram decretadas para perdoar crimes políticos. Em 1791, a Assembleia Nacional Constituinte concedeu uma anistia aos participantes da Revolta de Nancy, que haviam se rebelado contra o governo revolucionário.

Nos Estados Unidos, após a Guerra Civil Americana, o presidente Andrew Johnson emitiu várias proclamações de anistia para perdoar aqueles que haviam apoiado a Confederação. A mais abrangente dessas proclamações foi emitida em 1868, concedendo perdão a todos os ex-confederados, exceto a algumas figuras de destaque.

No campo internacional, foi fundada em 1961, a Anistia Internacional que é uma organização não governamental dedicada à defesa dos direitos humanos. Por meio de campanhas e pressões políticas, a Anistia Internacional tem desempenhado um papel crucial na concessão de anistias para prisioneiros políticos e vítimas de injustiças ao redor do mundo.

No século XX e XXI, a anistia continua a ser um instrumento importante em processos de transição política, especialmente em países que passaram por regimes autoritários ou conflitos armados.

No Brasil, a anistia ganhou destaque após o fim da ditadura militar (1964-1985). A Lei da Anistia, editada durante a ditadura militar no ano 1979, teve como objetivo encerrar o ciclo de perseguições políticas e permitir a reintegração de opositores exilados ou presos, bem como estender seus efeitos também a agentes do regime, em um gesto de reconciliação nacional — gesto esse, até hoje alvo de críticas e controvérsias morais e jurídicas. Esta lei foi um passo importante para a redemocratização do país.

Na África do Sul, a anistia desempenhou um papel fundamental no processo de reconciliação pós-apartheid. A Comissão de Verdade e Reconciliação, estabelecida em 1995, concedeu anistia a indivíduos que confessaram seus crimes políticos em troca de informações sobre violações dos direitos humanos.

Como se observa, a anistia possui um histórico extenso como instrumento de pacificação e reconciliação. Desde a Grécia e Roma antigas até os contextos modernos de transição política, tem sido utilizada para conceder perdão por crimes e fomentar a harmonia social. Apesar de sua aplicação ser frequentemente controversa, notadamente em casos de crimes graves, a anistia mantém-se como um mecanismo relevante para a construção de um futuro pacífico e democrático.

Torna-se imperativo, mais do que nunca, resgatar o verdadeiro significado da anistia. Esta deve ser uma medida excepcional, fundamentada na noção de reconciliação, porém jamais dissociada da devida responsabilização. Uma nação que oferece perdão sem o reconhecimento do erro, que confere a anistia sem a devida condenação, ou que protege antes do julgamento, não progride em direção à pacificação, apenas institucionaliza a impunidade.

Luciano Cardoso

É advogado inscrito na OAB/GO. Membro do Instituto Goiano do Direito do Trabalho. Membro e Conselheiro Fiscal da Associação Goiana da Advocacia Trabalhista - AGATRA. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/GO. Chefe do Departamento Jurídico da Companhia de Urbanização de Goiânia - COMURG.
E-mail: [email protected].

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