Hoje, dia 6 de junho, o Brasil celebra o Dia Nacional do Teste do Pezinho, um exame simples, porém absolutamente essencial, capaz de identificar precocemente uma série de doenças genéticas, metabólicas e infecciosas em recém-nascidos, permitindo tratamento imediato e salvando milhares de vidas.
O que poucos sabem, porém, é a história por trás desse procedimento que revolucionou a saúde neonatal. O teste foi desenvolvido nos anos de 1960 pelo médico norte-americano Robert Guthrie, que, sensibilizado pela luta de familiares de crianças com fenilcetonúria — uma doença genética que, se não tratada desde os primeiros dias de vida, leva a severo retardo mental —, criou um método simples, eficaz e de baixo custo para rastrear essa e outras enfermidades a partir de uma pequena amostra de sangue coletada do calcanhar do bebê.
O Brasil incorporou o teste ao Sistema Único de Saúde (SUS) em 1992, por meio do Programa Nacional de Triagem Neonatal, um avanço inegável para a saúde pública. Desde então, milhões de crianças foram beneficiadas, com detecção precoce de doenças como a Fenilcetonúria, o Hipotireoidismo congênito, a Anemia falciforme, a Fibrose cística, a Hiperplasia adrenal congênita, a Deficiência de biotinidase, entre outras. Quando não diagnosticadas precocemente, essas doenças podem levar a deficiências irreversíveis, quadros severos de deficiência intelectual, cegueira, surdez, crises metabólicas fatais e até a morte súbita neonatal.
Se o avanço científico é motivo de comemoração, o mesmo não se pode dizer da realidade de acesso a este teste no Brasil. O país convive com uma verdadeira loteria geográfica: enquanto recém-nascidos em estados mais ricos, como São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, possuem cobertura que supera 98% dos nascidos vivos, nas regiões Norte e Nordeste esse percentual despenca para menos de 75%, segundo dados do Ministério da Saúde em 2023.
Não é exagero afirmar que no Brasil o CEP vale mais que o DNA. O maior desafio não é tecnológico, nem científico — mas sim estrutural, social e político. Uma criança nascida no interior da Amazônia Legal, nos rincões do Sertão ou nas periferias do Norte e Nordeste tem uma chance significativamente menor de receber um diagnóstico precoce em comparação com uma criança nascida na região Sudeste.
O paradoxo é cruel: não basta nascer saudável, é preciso nascer no lugar certo.
Os números que gritam — e são ignorados. Segundo o próprio Ministério da Saúde, aproximadamente 2.500 crianças nascem, todos os anos, com doenças detectáveis pelo teste básico do pezinho no Brasil. No SUS, a cobertura nacional média em 2023 foi de 86%, muito aquém dos 99% registrados em países como Portugal e Reino Unido. Enquanto no Brasil o tempo médio de entrega dos resultados ainda pode ultrapassar 30 dias em alguns estados, em países como Alemanha e Japão, o laudo é disponibilizado em menos de 7 dias após a coleta.
Além disso, o teste básico, oferecido pelo SUS, cobre apenas 6 doenças, enquanto em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, Canadá, Austrália e diversos países da União Europeia, o teste expandido pode rastrear entre 30 e 50 doenças genéticas e metabólicas, dependendo da localidade.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a triagem neonatal ampliada é considerada política pública de saúde essencial. No entanto, no Brasil o acesso ao teste expandido é praticamente restrito ao setor privado ou a ações isoladas de entidades filantrópicas, como as APAEs, que historicamente desempenham papel crucial na realização desse exame, na interpretação dos resultados e no acolhimento das famílias.
As APAEs (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) são exemplo de referência silenciosa de um Estado ausente, posto que, há décadas, suprem uma deficiência clara do Poder Público na efetiva universalização da triagem neonatal. Com laboratórios altamente especializados, técnicos capacitados e compromisso social, muitas APAEs não apenas realizam o teste básico, mas também oferecem o teste do pezinho expandido, acompanhamento multiprofissional e suporte às famílias. Essas entidades, que deveriam ser complementares, acabam assumindo a linha de frente de uma política pública que, embora obrigatória, é insuficiente, capenga e desigual.
O Dia Nacional do Teste do Pezinho, comemorado todo dia 6 de junho, precisa ser muito mais do que uma simples data no calendário da saúde pública. Precisa ser um marco de reflexão, cobrança e indignação.
O que está em jogo não é apenas um exame. É o direito constitucional à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana. O pequeno furo no calcanhar tem o poder de salvar vidas, proteger famílias e garantir futuros. Mas só será verdadeiramente motivo de orgulho nacional quando for acessível, eficiente, universal e igualitário. Até lá, seguiremos testemunhando a saúde pública brasileira sendo, mais uma vez, um retrato fiel das nossas desigualdades estruturais.