Na pressa descompassada da vida urbana, quase ninguém nota. Mas, às vezes, o acaso nos obriga a enxergar. Um semáforo fechado, a chuva que insiste em cair, buzinas impacientes — e ali, na calçada, um menino de aproximadamente sete anos chora. Não por um machucado, mas pela perda de cinco reais. Cinco reais que representavam o lucro de suas jujubas vendidas no trânsito. Cinco reais que talvez significassem o pão daquela noite.
A cena poderia ser ficção, mas é realidade crua. É cotidiana. É invisível. É o retrato pungente do Brasil que ainda convive, em pleno século XXI, com a normalização do trabalho infantil.
Segundo a PNAD Contínua de 2023, 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham no país. Houve redução de 14,6% em relação ao ano anterior, é verdade. Mas em números absolutos, o que permanece é o absurdo. Uma cifra que denuncia. Uma infância que se perde antes mesmo de começar.
Uma infância explorada e esquecida. O trabalho infantil não é apenas uma distorção social. É crime, é violação de direitos humanos, é uma chaga constitucional.
A Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as convenções internacionais ratificadas pelo Brasil são claros: é proibido o trabalho de menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14. Mas basta uma volta nos semáforos, feiras livres, sinais ou plantações para que esse princípio seja atropelado.
Ainda mais assustador: 586 mil dessas crianças, em 2023, estavam envolvidas nas piores formas de trabalho infantil — atividades insalubres, perigosas, degradantes, muitas vezes noturnas, quase sempre invisíveis. São crianças que empunham ferramentas, que inalam veneno, que enfrentam jornadas que adultos não suportam. Crianças que não brincam. Que não sonham. Que não vivem.
Cor, classe, credo, demonstra que não há exclusão, não se trata de um fenômeno aleatório. O retrato do trabalho infantil no Brasil tem cor e tem CEP.
65,1% são meninos, 65,2% são pretos ou pardos. São os filhos da periferia, dos invisíveis, da pobreza estrutural. Chamam-nos de “ajudantes”, de “trabalhadores mirins”, como se isso amenizasse a tragédia.
Mas são vítimas. São crianças que deveriam estar aprendendo a escrever, e não a sobreviver!
A taxa de escolarização entre essas crianças é significativamente menor (88,4%) do que entre as que não trabalham (97,5%). O que isso significa? Que o trabalho infantil não ensina responsabilidade — ensina a desistir cedo demais. Ensina a reproduzir o ciclo da miséria. Ensina que o Estado, a sociedade, os adultos falharam.
É verdade que houve avanços. Programas sociais, como o novo Bolsa Família, o aumento da renda familiar, e algumas políticas públicas explicam a redução dos números. Mas o avanço é tímido diante da complexidade da ferida. Enquanto houver uma criança trabalhando, enquanto houver silêncio diante dessa barbárie, o Brasil continuará fracassando.
É preciso muito mais do que caridade na janela do carro. É preciso ação estrutural, denúncia, exigência de políticas públicas robustas, rede de proteção eficiente, conselhos tutelares estruturados, escolas acolhedoras e vontade política real. Erradicar o trabalho infantil não é um desejo: é uma obrigação legal e ética. Ignorá-lo, ou romantizá-lo, é ser cúmplice.
O Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, celebrado em 12 de junho, não pode ser apenas mais uma data no calendário institucional. Deve ser um grito coletivo. Um chamado à consciência. Um apelo à memória.
Porque enquanto uma criança chora por cinco reais — ou pelo que cinco reais representam —, não estamos apenas perdendo moedas. Estamos perdendo a infância. A nossa humanidade. E o futuro.