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A cultura do jeitinho brasileiro


Luciano Cardoso Por Luciano Cardoso em 16/05/2025 - 08:22

Mais de 80% dos municípios brasileiros enfrentam problemas crônicos com o descarte irregular de lixo e entulho

O chamado jeitinho brasileiro, muitas vezes disfarçado de astúcia inofensiva, na verdade corrói os alicerces éticos da sociedade, funcionando como um agente silencioso de sabotagem cultural. Longe de ser uma expressão legítima de criatividade ou flexibilidade social, é um traço permissivo e estruturante da cultura nacional que relativiza o certo e institucionaliza a transgressão como prática cotidiana.

Poucos traços culturais são tão reconhecíveis quanto o chamado “jeitinho brasileiro”. Vendido muitas vezes como sinal de criatividade, adaptabilidade e esperteza, esse comportamento carrega, na verdade, um subtexto corrosivo: a permissividade com a transgressão, a banalização da infração e a naturalização de condutas antiéticas que comprometem a coletividade.

O problema é profundo e multifacetado. Vai muito além da esfera política ou dos escândalos midiáticos de corrupção. Ele está nas pequenas ações cotidianas, no comportamento social enraizado, na omissão cívica generalizada. Está no indivíduo que saqueia uma carga de caminhão tombado, justificando que “todo mundo faz o mesmo”. Está no pai de família no supermercado que fura fila, no motorista que avança o sinal vermelho, ultrapassa em faixa contínua ou transita em velocidade absurda, colocando vidas em risco. Está no cidadão que joga lixo nas ruas, despeja entulhos em lotes baldios e depois se queixa da ineficiência da limpeza urbana.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que mais de 80% dos municípios brasileiros enfrentam problemas crônicos com o descarte irregular de lixo e entulho, o que impacta diretamente a saúde pública e os custos da administração. Em paralelo, uma pesquisa do Instituto Datafolha revelou que 61% dos brasileiros já admitiram cometer infrações de trânsito, sendo 42% deles conscientes de que o fazem de forma recorrente.

A permissividade também está presente no consumidor que, ao perceber um erro grosseiro em um anúncio comercial, exige a venda de um produto por um valor notoriamente errado, amparando-se no direito do consumidor, mas desprezando a boa-fé objetiva e os princípios da equidade e razoabilidade. Está no eleitor que vende seu voto por um favor, um saco de cimento ou uma quantia em dinheiro. Pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV) aponta que 30% dos brasileiros consideram aceitável trocar voto por benefício pessoal, evidenciando o nível de normalização de práticas ilegais no processo democrático.

Se compararmos com dados internacionais, o contraste é alarmante. De acordo com o Índice de Percepção da Corrupção 2023, da Transparência Internacional, o Brasil ocupa a 104ª posição entre 180 países avaliados, sendo superado por nações latino-americanas como Chile, Uruguai e Costa Rica. Em países como a Dinamarca, Finlândia e Nova Zelândia, que lideram o ranking, a percepção de corrupção é mínima e há forte reprovação cultural e institucional às práticas ilícitas. Nessas sociedades, o desrespeito às regras, mesmo em pequenas infrações, é socialmente repreensível e frequentemente penalizado com rigor.

A naturalização do que é ilícito no Brasil é também perceptível nas estruturas institucionais. O chamado “toma lá dá cá” tornou-se prática institucionalizada no Congresso Nacional. Projetos de lei importantes, reformas estruturantes e até medidas de interesse coletivo só avançam quando condicionados à liberação de emendas parlamentares ou à ocupação de cargos estratégicos por indicação política. Essa prática, que configura verdadeira barganha legislativa, compromete a moralidade administrativa e fere os princípios republicanos. O mais alarmante, porém, é a aceitação silenciosa e generalizada por parte da sociedade, que, anestesiada pela repetição histórica, já não se indigna como deveria.

Esse fenômeno, que a cultura popular batizou de “Lei de Gerson” (famosa propaganda dos anos 70 que exaltava a ideia de levar vantagem em tudo), não é apenas uma expressão folclórica. É sintoma de uma crise de caráter e de identidade cívica. Trata-se de uma cultura que corrompe silenciosamente a relação entre o indivíduo e o coletivo, entre o direito e o dever, entre a vantagem pessoal e o bem comum.

Romper com esse padrão é um desafio civilizatório. E como todo processo estrutural, exige tempo, continuidade e, acima de tudo, educação e cultura. Não basta o cumprimento formal das leis, é preciso formação moral, ética, crítica. Uma sociedade que relativiza o ilícito na base, dificilmente conseguirá extirpá-lo do topo.

Para isso, é essencial que os dirigentes políticos ofereçam bons exemplos. A coerência entre discurso e prática é o primeiro passo para restabelecer a confiança da população e, consequentemente, transformar comportamentos. A liderança pelo exemplo ainda é, e sempre será, uma das mais eficazes ferramentas de mudança social.

É necessário, portanto, um pacto coletivo que ultrapasse as fronteiras partidárias e ideológicas. Um pacto por um Brasil mais ético, mais justo e mais consciente. A mudança não virá de uma canetada, mas de um processo profundo de reconstrução cultural que deverá passar necessariamente pela educação. E ele começa nas pequenas escolhas, no cotidiano de cada cidadão e na educação básica. O caminho é longo, mas inadiável.

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Luciano Cardoso

É advogado inscrito na OAB/GO. Membro do Instituto Goiano do Direito do Trabalho. Membro e Conselheiro Fiscal da Associação Goiana da Advocacia Trabalhista - AGATRA. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/GO. Chefe do Departamento Jurídico da Companhia de Urbanização de Goiânia - COMURG.
E-mail: [email protected].

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