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Foro privilegiado: prerrogativa ou protecionismo?


Por Luciano Queiroz em 14/03/2025 - 10:26

O foro por prerrogativa de função, conhecido popularmente como foro privilegiado, foi concebido com o objetivo de garantir a independência de autoridades públicas, protegendo-as de perseguições judiciais e políticas e assegurando que fossem julgadas por instâncias superiores, supostamente mais qualificadas e imunes a pressões locais. Entretanto, ao longo dos anos, esse instituto foi deturpado, tornando-se um verdadeiro escudo para políticos e autoridades que desejam escapar da responsabilização de seus atos.

A Constituição Federal de 1988 consagrou o foro privilegiado para diversas autoridades, incluindo o Presidente da República, ministros de Estado, parlamentares, governadores e membros do Judiciário, estabelecendo a competência para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções exercidas.

A justificativa inicial era garantir que essas figuras públicas fossem julgadas por tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), evitando decisões arbitrárias de juízes de instâncias inferiores que poderiam sofrer influências políticas ou regionais. No entanto, esse mecanismo se transformou em um artifício para postergar investigações, dificultar condenações e, muitas vezes, garantir a impunidade de figuras poderosas.

O Foro Privilegiado, que foi concebido para uma proteção Institucional, tem se travestido de blindagem política.

A distorção desse instituto atingiu seu ápice nos últimos anos, especialmente com a atuação do STF, que passou a interpretar sua própria competência de maneira elástica e conveniente, decidindo caso a caso conforme critérios muitas vezes alheios à legalidade estrita. O Supremo, que deveria atuar como um guardião da Constituição, tem assumido um papel ativo na política, interferindo diretamente em processos e alterando a lógica do foro privilegiado conforme o réu envolvido.

Em 2018, o STF decidiu restringir o foro privilegiado para deputados e senadores apenas a crimes cometidos durante o exercício do mandato e relacionados à função pública. Embora essa mudança tenha sido vista como um avanço, o que se observou na prática foi uma aplicação seletiva dessa restrição. Enquanto alguns processos foram rapidamente remetidos à primeira instância, outros permaneceram nas cortes superiores por critérios pouco transparentes, muitas vezes beneficiando aliados políticos ou servindo como instrumento de pressão contra adversários.

O Supremo Tribunal Federal, ao longo dos últimos anos, tem protagonizado decisões que relativizam a aplicação do foro privilegiado e ampliam seus próprios poderes de forma inédita na história republicana. Sob a justificativa de proteger o Estado Democrático de Direito, ministros do STF têm acumulado funções de investigação, acusação e julgamento, rompendo com o princípio básico da separação dos poderes e do devido processo legal.

Uma das figuras centrais nesse cenário é o ministro Alexandre de Moraes, cujas decisões têm extrapolado os limites constitucionais e estabelecido precedentes perigosos para o equilíbrio institucional. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa atuação foi o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, após os eventos do dia 8 de janeiro de 2023, o qual demonstrou uma clara interferência e banalização da ordem constitucional de separação dos poderes.

Após os atos de vandalismo que resultaram na invasão das sedes dos Três Poderes, Alexandre de Moraes determinou, de forma monocrática, o afastamento imediato de Ibaneis Rocha do governo do Distrito Federal por 90 dias. A decisão, tomada sem qualquer denúncia formal e sem o devido contraditório, escancarou a atuação discricionária do STF em questões que deveriam ser tratadas por outros mecanismos institucionais.

O afastamento do governador, uma medida extrema que deveria ser aplicada apenas em casos de flagrante envolvimento em atos ilícitos, acabou por não resultar em nenhuma denúncia formal. O próprio Procurador-geral da República, Paulo Gonet, reconheceu a ausência de elementos que justificassem a continuidade da investigação contra Ibaneis Rocha, afirmando que:

“Esgotadas as diligências viáveis e sem outra linha investigatória idônea, a partir dos elementos de informação produzidos até o momento, os fatos relatados não revelam justa causa hábil a autorizar o prosseguimento da persecução penal contra Ibaneis Rocha Barros Júnior.”

O caso revela uma perigosa realidade: decisões judiciais que deveriam ser pautadas exclusivamente na legalidade passaram a ser influenciadas por um componente político e midiático, onde medidas drásticas são tomadas antes mesmo de se comprovar a culpa do acusado. Se um governador democraticamente eleito pode ser afastado do cargo sem que sequer haja uma acusação formal contra ele, que garantias restam para os demais agentes públicos?

A interferência do STF na política nacional não se limita ao foro privilegiado. A corte tem se utilizado de interpretações jurídicas flexíveis para justificar decisões que consolidam sua atuação como um poder que não apenas interpreta a Constituição, mas também a molda conforme interesses momentâneos. Esse protagonismo é evidente em alguns exemplos recentes:

  • Investigações conduzidas sem participação do Ministério Público: O inquérito das fake news, por exemplo, foi instaurado pelo próprio STF, sem requisição da PGR, violando a lógica processual tradicional;
  • Prisão e censura de opositores sem devido processo legal: Medidas cautelares excessivas, como prisões preventivas e censuras a veículos de comunicação, têm sido determinadas sem o amplo direito de defesa;
  • Desconsideração de personalidade jurídica sem contraditório: Houve a inclusão de empresa ligada à Elon Musk e o bloqueio de contas da empresa Starlink Holding sem nenhuma fundamentação lógica e legal;
  • Decisões monocráticas que substituem a vontade popular: O afastamento de Ibaneis Rocha e outras intervenções diretas na Administração Pública demonstram um ativismo judicial que desafia a ordem constitucional.

É urgente uma reforma no foro privilegiado, pois, em seu formato atual, ele se tornou mais um mecanismo de blindagem política do que uma verdadeira garantia institucional. Em vez de proteger o exercício legítimo de funções públicas, o instituto tem se revelado um obstáculo à responsabilização de agentes públicos, ao mesmo tempo em que sua interpretação tem sido usada seletivamente para perseguições políticas e para a avocação de competências, muitas vezes sob o disfarce de interpretações constitucionais que variam conforme interesses momentâneos, distanciando-se dos princípios da legalidade e da segurança jurídica, a qual Rui Barbosa já alertava.

Para que o Brasil avance no fortalecimento de sua democracia, é essencial que o foro privilegiado seja reformado/reformulado ou até mesmo extinto para a maioria dos cargos públicos. Apenas chefes de Estado e algumas poucas funções estratégicas deveriam ter prerrogativas de julgamento diferenciadas, e ainda assim, sob regras claras e bem delimitadas e em crimes ligados ao exercício do cargo público.

Em mais uma decisão que distancia o Brasil dos ideais republicanos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 7 votos a 4, ampliar o alcance do foro privilegiado, garantindo sua manutenção mesmo após o agente público deixar o cargo. A mudança de entendimento representa um claro retrocesso, pois transforma uma prerrogativa originalmente concebida para proteger o exercício da função em um escudo permanente contra a responsabilização judicial.

Em seu voto, o Relator Ministro Gilmar Mendes fundamentou a questão pontuando que:

“o atual entendimento do STF reduz, indevidamente, o alcance da prerrogativa de foro e é contraproducente por causar flutuações de competência na causas criminais, trazendo instabilidade ao sistema de Justiça. O parlamentar pode, por exemplo, renunciar antes da fase de alegações finais, para forçar a remessa dos autos a um juiz que, aos seus olhos, é mais simpático aos interesses da defesa”,

Esse novo entendimento, que foi decidido e firmado no bojo de um Habeas Corpus em ação penal, o qual tratava de suposta denuncia de rachadinhas praticada por um ex-Deputado Federal, quando estava no exercício de sua função pública.

A denúncia aponta que o Deputado Federal Zequinha exigiu que os servidores de seu gabinete depositassem mensalmente 5% de seus salários nas contas de seu partido, entre 2007 e 2014, sob pena de exoneração.

Diante dos fatos, fica evidente que, nesses casos, a Prerrogativa de Foro não visa proteger o exercício da função política, mas sim garantir proteção pessoal. Isso demonstra um equívoco na tese estabelecida, configurando não uma prerrogativa, mas um privilégio.

Ao final o colegiado, por maioria, votou por conceder o HC e reconhecer a competência do STF para processar e julgar a ação penal, propondo a seguinte tese:

“A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício.”

Em contraponto à tese, o Ministro André Mendonça se baseou no princípio do juiz natural, garantido pelo artigo 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, que assegura que toda causa seja julgada por um tribunal previamente estabelecido.

 Mendonça argumentou que a manutenção do foro privilegiado após o término do mandato seria uma violação desse princípio e um desrespeito ao devido processo legal. Segundo o ministro, “a prerrogativa de foro não é um privilégio pessoal do ocupante do cargo, mas uma proteção do cargo em si. Assim, quando o político deixa de exercer suas funções, a competência deve ser transferida para a primeira instância”

 Até então, a regra era clara: o foro especial só valia para crimes relacionados ao mandato e enquanto o ocupante estivesse no cargo. Com a nova interpretação, o privilégio se estende indefinidamente, garantindo a autoridades um julgamento mais lento e distante do alcance da Justiça Comum. O resultado prático dessa decisão será a manutenção da morosidade dos tribunais superiores, o aumento da impunidade e a perpetuação do foro privilegiado como um instrumento de proteção seletiva.

O STF, mais uma vez, cede às conveniências momentâneas e altera a interpretação da Constituição, desconsiderando o princípio da igualdade e o anseio por um sistema de Justiça mais ágil e acessível. A decisão consolida uma elite intocável e distante da realidade da população, permitindo que agentes políticos mantenham a blindagem do foro privilegiado mesmo após deixarem o poder, enquanto cidadãos comuns continuam sujeitos ao peso integral da lei. O Estado Democrático de Direito, que deveria assegurar a igualdade jurídica entre todos, caminha em direção à desigualdade, consolidando uma elite intocável.

Além disso, é fundamental que o STF seja submetido a um controle mais rigoroso de seus próprios limites constitucionais. O ativismo judicial precisa ser contido para evitar que a Corte continue atuando como um poder absoluto, sem freios e contrapesos. O equilíbrio entre os Poderes deve ser restaurado para que a Justiça seja vista não como uma ferramenta política, mas sim como uma instituição imparcial e confiável.

O Brasil vive tempos em que o Direito é interpretado conforme a conveniência política do momento, isso é Justiça Seletiva. O foro privilegiado, que deveria ser um instrumento de proteção institucional, tornou-se um mecanismo de blindagem seletiva, beneficiando alguns e punindo outros sem critérios objetivos.

As decisões teratológicas do STF, especialmente as monocráticas e sem base legal clara, representam um risco real para o Estado Democrático de Direito. Se o Judiciário pode afastar um governador sem provas, manipular investigações e reinterpretar a Constituição ao seu bel-prazer, qual a garantia de que o próximo alvo não será qualquer cidadão que se torne inconveniente para a ordem estabelecida?

Reformar o foro privilegiado e conter o ativismo judicial não são apenas demandas institucionais, mas sim condições fundamentais para que o Brasil continue sendo uma democracia funcional. Enquanto a Justiça for usada como um instrumento de poder e não como um pilar da legalidade, a insegurança jurídica continuará corroendo a confiança nas instituições e minando a própria essência do Estado de Direito.

Luciano Cardoso

É advogado inscrito na OAB/GO. Membro do Instituto Goiano do Direito do Trabalho. Membro e Conselheiro Fiscal da Associação Goiana da Advocacia Trabalhista - AGATRA. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/GO. Chefe do Departamento Jurídico da Companhia de Urbanização de Goiânia - COMURG.
E-mail: [email protected].

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