Lançado em maio e ainda em cartaz, Homem com H não é apenas um filme sobre Ney Matogrosso. É sobre a arte brasileira em carne viva, nascida entre becos, palcos e silêncios impostos por ditaduras e moralismos. Dirigida por Esmir Filho, a cinebiografia vai além da trajetória do artista e mergulha em sua recusa em ser domado. Com imagens sensoriais, corpo e voz se tornam extensão de uma alma indomável, e Jesuíta Barbosa é mais que intérprete; é invocação.
Ney, surgido com o Secos & Molhados como figura andrógina nos anos 1970, é retratado não como herói, mas como símbolo de desobediência estética. Filho do Brasil profundo e moldado por repressões familiares e políticas, ele atravessa — e é atravessado por — um país que tentou silenciá-lo. A fotografia, entre sombras e brilhos, ecoa a contracultura e a vanguarda queer, criando um espaço onde o corpo não pede licença: ele simplesmente ocupa.
O filme adota uma linguagem de poesia visual, onde músicas expandem sentidos, cenas sugerem mais do que explicam e a animalidade simboliza o território instintivo onde Ney sempre habitou. Se o cinema brasileiro por vezes teme o excesso, Esmir Filho o reivindica com elegância, recusando a biopic burocrática e entregando um manifesto de presença — política, estética e sensível. Ainda assim, em meio a essa ambição formal, o filme por vezes tropeça em repetições ou numa montagem que pode dispersar parte do público menos familiarizado com o experimentalismo. Há momentos em que o ritmo vacila, e a forma parece se impor sobre o conteúdo.
Mas essas pequenas hesitações não diminuem o impacto do todo. “Homem com H” é um filme que, como Ney, não cabe em categorias. É música encarnada, gesto teatral, memória e invenção. Jesuíta Barbosa entrega uma performance potente, que não busca imitar, mas traduzir — com o corpo, com o olhar, com o fôlego. A trilha sonora, costurada com cuidado, resgata o lirismo e a força bruta do repertório de Ney, ampliando a experiência para além da imagem.
No fim, o longa reafirma algo essencial: que a arte, quando livre, continua a ser a mais feroz forma de resistência. Ao sair da sala, permanece uma inquietação bonita — a de que ser indomável, como Ney, talvez seja uma das maiores fidelidades que alguém pode ter consigo mesmo.