Neste terceiro artigo da série, intitulada “Celular: Mal do Século ou Solução?”, propõe-se uma reflexão aprofundada acerca do impacto da tecnologia celular nas organizações e mercados. Trata-se de uma inovação que promoveu uma transformação significativa nos hábitos, mercados e possibilidades, contribuindo para o incremento da segurança, agilidade, facilidades e abrindo um leque de possibilidades.
Vivemos em uma era em que o mundo inteiro cabe na palma da mão e nossa tendência é crer na Ilusão da Onipotência Digital, soberania extrema, quase ilimitada, despótica. A evolução do celular — de instrumento rudimentar de comunicação a centro nervoso de decisões, negociações, relações e consumo — é talvez o maior salto tecnológico da vida contemporânea. Não é mais apenas um aparelho: é agenda, banco, GPS, câmera fotográfica, carteira digital, ferramenta de trabalho, escritório, centro de decisões, instrumento de investimento online e, mais recentemente, centro de inteligência artificial acessível.
Com um toque, uma mensagem no WhatsApp é enviada para o outro lado do planeta. Uma compra é feita, rastreada com segurança, confirmada e recebida em tempo recorde. O celular, aliado às redes sociais e à integração logística, transformou o comércio online em um fenômeno irreversível. Empresas que antes lutavam para distribuir catálogos, hoje vendem globalmente com um post, um link, um QR code. A logística é otimizada com rastreabilidade em tempo real. O cliente sabe onde está sua encomenda com precisão de satélite. O lojista, por sua vez, acompanha seu estoque minuto a minuto.
Os avanços na área logística são particularmente notáveis. Soluções online embarcadas em veículos — como aplicativos de geolocalização, roteirização inteligente, sensores integrados e telemetria — possibilitam não apenas o rastreamento em tempo real, mas também a previsão de atrasos, análise de desempenho de condutores e otimização de rotas com base em dados atualizados do tráfego e condições climáticas. Empresas como Amazon, Mercado Livre e grandes operadores logísticos brasileiros utilizam tais tecnologias para alcançar entregas no mesmo dia, reduzindo custos operacionais e aumentando a satisfação do consumidor.
A segurança de cargas valiosas, frequentemente visadas por facções criminosas, também avançou significativamente. A introdução de iscas eletrônicas e sensores ocultos nos veículos, com tecnologia de cobertura por meio de chip celular, tem reduzido drasticamente os índices de roubo de cargas e permitindo a rápida recuperação de mercadorias desviadas. Além disso, tais dispositivos contribuíram para a redução dos custos logísticos e das apólices de seguro, uma vez que as soluções de monitoramento tornaram-se não apenas mais eficientes, mas também acessíveis economicamente às empresas de transporte e segurança.
Segundo levantamento da Associação Brasileira de Logística (ABRALOG), houve um crescimento de 43% no investimento em tecnologias móveis no setor de transporte e distribuição no Brasil entre 2020 e 2023. O uso de aplicativos integrados aos veículos de entrega e a digitalização dos processos logísticos permitiram uma elevação de até 30% na eficiência das operações em grandes centros urbanos.
Nesse contexto, a inteligência artificial se consolidou como aliada potente. Chatbots, assistentes de vendas, análise preditiva de comportamento do consumidor, automação de processos. Tudo à distância de um clique. Com as soluções de IA integradas aos celulares, o pequeno se tornou gigante, o local se tornou global, o imediato se tornou rotina, o empregado caro, que carrega uma carga tributária e fiscal enorme está sendo substituído por robôs inteligentes que trabalham 24 horas sem necessariamente receber horas extras.
Contudo, essa revolução tem seu custo silencioso. A mesma tecnologia que democratiza o acesso também ilude. A IA, embora poderosa, é ferramenta, não fim. O conhecimento humano continua essencial para que os conteúdos sejam gerados e sejam compreendidos, questionados, ajustados e aplicados com responsabilidade. O uso indistinto e acrítico dessas ferramentas, porém, tem gerado uma geração de operadores de interface, e não de pensadores. Pessoas que reproduzem respostas sem compreendê-las, que replicam soluções sem examinar os contextos.
Ao delegarmos ao celular e à IA a condução de nossas escolhas, corremos o risco de reduzir nossa capacidade crítica, nosso discernimento e nossa autonomia intelectual. Em vez de uma ferramenta que expande possibilidades, ela pode se tornar um atalho para a superficialidade, uma máscara de conhecimento que disfarça a ausência de base conceitual.
Segundo dados da GSMA Intelligence, até o final de 2023, mais de 5,5 bilhões de pessoas no mundo tinham acesso à telefonia móvel, e mais de 4,6 bilhões usavam smart phones. No Brasil, a Anatel registrou mais de 256 milhões de linhas móveis ativas em 2023, número superior à população do país. Com a expansão da tecnologia 5G, a cobertura se torna cada vez mais veloz, estável e abrangente, criando o ambiente perfeito para a proliferação da IA nos celulares.
Além disso, segundo a consultoria PwC, estima-se que a inteligência artificial contribuirá com até US$ 15,7 trilhões para a economia global até 2030, sendo o comércio eletrônico um dos principais setores beneficiados. Já a consultoria Gartner aponta que, até 2026, 80% das interações de serviço ao cliente serão gerenciadas por soluções automatizadas baseadas em IA, evidenciando a integração irreversível entre o celular, a rede e a inteligência computacional.
Nesse cenário, o professor e pensador francês Éric Sadin adverte: “Estamos delegando ao digital a função de pensar, de decidir e de agir. A inteligência artificial não pensa — ela calcula, e isso não é pensar”. A crítica de Sadin ecoa como alerta para os limites éticos e cognitivos do uso indiscriminado de sistemas autônomos em substituição ao pensamento e julgamento humano.
Um amigo-irmão me relatou que, em uma conversa de mesa com a esposa e filhos, comentavam da recente morte do Papa Francisco e surgiu uma pergunta aparentemente inocente: “Em que data teria ocorrido o papado de João Paulo I?” Era uma provocação retórica, daquelas que nascem para fomentar lembranças, buscar conexões mentais, estimular o debate, a memória, a dúvida saudável. Era um momento de partilha, risos e reflexão espontânea.
Contudo, sem qualquer hesitação, alguém sacou o celular e disse: “Vou descobrir agora!”, e em poucos segundos a resposta estava na tela. Aquilo que era para ser um exercício intelectual coletivo deu lugar à pressa da informação, à ansiedade da resposta imediata. Esse episódio ilustra, com simplicidade brutal, o espírito da época: a impaciência em esperar, o incômodo em raciocinar, o desprestígio do tempo da mente em favor do tempo da máquina. A tecnologia, nesse caso, não serviu ao pensamento, mas o interrompeu.
A velocidade, o acesso e a integração são, sem dúvida, avanços civilizatórios. Mas é preciso lembrar que a tecnologia é instrumento, não substituto da consciência humana. O celular é ponte, não destino. A inteligência artificial é suporte, não verdade absoluta.
Que a palma da mão continue abrindo janelas para o mundo, mas que a mente permaneça aberta para compreender o que vê, interpretar o que consome, pensar e construir, com senso crítico, um futuro onde a tecnologia sirva à humanidade, e não o contrário.