“Todos os poderes são subordinados à Constituição; e, se ela exorbitam, há de voltar a ela pela força constitucional da autoridade judiciária.”
Rui Barbosa
A Constituição de 1824, a primeira do Brasil, completou 201 anos e permanece como um marco da estruturação do Estado brasileiro. Outorgada por D. Pedro I após a Noite da Agonia, a Carta Imperial estabeleceu os fundamentos do Estado de Direito, ainda que sob um viés centralizador e monárquico. Apesar das limitações de seu contexto histórico, foi um documento que consolidou garantias civis e organizou a base da administração pública no Brasil.
A Noite da Agonia, ocorrida em 12 de novembro de 1823, foi um dos episódios mais dramáticos do período pós-independência. D. Pedro I, insatisfeito com os rumos que a Assembleia Constituinte estava tomando, ordenou a dissolução do órgão e determinou a prisão de diversos parlamentares. O embate se dava em torno do modelo de governo a ser adotado: enquanto os constituintes buscavam limitar os poderes do imperador, D. Pedro I insistia em um modelo mais centralizado. Com a dissolução da Assembleia, o imperador impôs sua própria Constituição em 1824, instituindo o Poder Moderador e reforçando a autoridade imperial. Esse ato estabeleceu as bases da organização política brasileira, mas também demonstrou a fragilidade dos princípios democráticos na época.
Passados dois séculos e diversas Constituições, o Brasil ainda se depara com desafios democráticos que, paradoxalmente, ecoam dilemas do passado. Em 1988, com a promulgação da atual Constituição, consolidou-se um Estado Democrático de Direito, com o reconhecimento amplo dos direitos fundamentais. No entanto, as constantes interpretações expandidas e casuísticas do Supremo Tribunal Federal (STF) têm levantado preocupações sobre a estabilidade institucional e o respeito à própria Carta Magna.
A Interpretação Constitucional, usada como Ferramenta de Poder, desnuda nossa fragilidade democrática e a nossa instabilidade Constitucional.
O Supremo Tribunal Federal, concebido como guardião da Constituição, tem extrapolado, em diversos momentos, seu papel de interpretação para assumir funções legislativas, executivas, policiais, investigativas e denunciativas, desvirtuando o princípio da separação dos poderes, do juiz natural, do devido processo, das garantias e da ampla defesa. As decisões monocráticas e o ativismo judicial são elementos que têm gerado insegurança jurídica e desconfiança na população.
A interpretação constitucional, em sua essência, deveria ser pautada pela coerência jurídica e pelo respeito ao texto original da Carta Magna. No entanto, o que se observa atualmente é uma distorção desse princípio, onde a Constituição se torna um instrumento moldável de acordo com interesses momentâneos. As decisões proferidas pelo STF muitas vezes não encontram respaldo na legislação vigente, mas sim na vontade dos ministros, o que subverte o princípio da legalidade e fragiliza a democracia.
Não são raros os episódios em que o STF reinterpreta trechos da Constituição de acordo com a conveniência política do momento, subvertendo regras estabelecidas. Um exemplo emblemático foi a recente decisão que ampliou o foro privilegiado para ex-ocupantes de cargos públicos, contrariando entendimento anterior da própria Corte. Outro caso, de grande impacto, foi o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, após os eventos de 8 de janeiro de 2023, sem sequer haver uma denúncia formal contra ele. O próprio Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, reconheceu que não havia justa causa para prosseguimento da persecução penal.
O uso da interpretação constitucional como ferramenta de poder remete a períodos históricos onde um único órgão detinha a prerrogativa de definir os rumos do país sem o devido contraponto. No passado, o Poder Moderador conferia ao Imperador autoridade sobre as demais instituições. Hoje, o STF parece exercer um papel análogo, decidindo com base em juízos políticos e não estritamente jurídicos. Essa hipertrofia do Judiciário gera desequilíbrio entre os poderes e compromete a previsibilidade das regras democráticas.
Ao analisar o Legado da Constituição de 1824 com o atual momento constitucional que vivemos nos leva a uma triste conclusão de uma erosão democrática.
A Constituição Imperial de 1824 previa um Poder Moderador, exercido pelo imperador, que funcionava como um equilíbrio entre os demais poderes. Embora este modelo tenha sido suprimido nas Constituições subsequentes, o atual ativismo do STF sugere uma reconfiguração informal deste poder, onde ministros exercem influência sem freios e contrapesos adequados. O papel da Suprema Corte, que deveria ser o de garantir a neutralidade jurídica, transformou-se em um agente político determinante, com decisões que frequentemente ignoram o princípio da legalidade estrita e o respeito à Constituição, priva os condenados de órgãos revisores das penas aplicadas, atropela princípios e se afasta cada vez mais da realidade das ruas, do direito e da justiça. Isso é perigoso!
Neste cenário, cabe questionar: estamos vivenciando um retrocesso institucional? A Constituição de 1988 foi desenhada para impedir a concentração de poder, garantindo a descentralização e a segurança jurídica. No entanto, quando um órgão, que deveria atuar como guardião da Constituição, assume um papel legislador e executor, o equilíbrio dos poderes fica comprometido.
O futuro da democracia brasileira encontra-se em uma encruzilhada. A letargia do Congresso Nacional, que barganha princípios, legisla em causa própria e ignora a gravidade do momento, aliada à subserviência do Executivo, que, por ora, se beneficia do texto e do contexto, evidencia os riscos que o país enfrenta. O cenário atual revela um perigoso desequilíbrio institucional, onde conveniências políticas se sobrepõem ao compromisso com a ordem democrática.
A história constitucional do Brasil é marcada por avanços e retrocessos, mas a necessidade de preservar a democracia exige respeito irrestrito às regras do jogo jurídico. O excesso de protagonismo do STF levanta um debate fundamental sobre a responsabilidade dos poderes e a necessidade de freios institucionais eficazes.
O Brasil de 2025 encontra-se em um dilema: ou reforça os valores democráticos consagrados na Constituição de 1988, assegurando que a Suprema Corte atue dentro dos limites de sua competência, ou se arrisca a um cenário de insegurança institucional permanente. O resgate do verdadeiro espírito constitucional é essencial para evitar que o Brasil retroceda a tempos de interpretações oportunistas e manipulações institucionais que comprometem a própria essência do Estado Democrático de Direito.
Tal assunto não é novo e já foi por mim abordado na Edição de 10 de janeiro de 2025, no artigo “Democracia em xeque”, qual termino com as seguintes palavras, que ainda são atuais e necessárias:
“Mais do que recordar a data, é imperativo que a sociedade reflita sobre os caminhos para fortalecer a democracia, garantindo segurança institucional e jurídica, além de respeito aos direitos fundamentais. Afinal, não há espaço para ataques às instituições, mas também não pode haver justificativas para a relativização das garantias constitucionais. A reconstrução do pacto democrático passa por justiça equilibrada, diálogo e compromisso com o futuro do país.”