O advogado é a favor da regulação das chamadas mídias digitais, que envolvem as redes sociais, os aplicativos de mensagem e as ferramentas de busca, mas acredita que o Projeto de Lei 2.630, que ficou conhecido como PL das Fake News, precisa ser aprimorado, especialmente em relação ao fato de deixar a regulamentação para uma segunda fase, aumentando a insegurança jurídica.
TRIBUNA DO PLANALTO – Qual a sua opinião sobre o Projeto de Lei (PL) que pretende responsabilizar as redes sociais, as ferramentas de busca e os aplicativos de mensagem pelo conteúdo veiculado?
RAFAEL MACIEL – É muito difícil falar sou a favor ou sou contra o PL. Eu sou a favor e defensor de que é necessário haver uma regulação das redes sociais porque é preciso que elas sejam mais transparentes e que haja regras. Por exemplo, há contas que são removidas sem qualquer tipo de informação sobre qual violação foi cometida, não há respostas claras. As redes sociais dizem que houve uma violação, mas não indicam qual daqueles milhares de artigos foi violado exatamente. Já teve casos de portais que, por causa de um conteúdo considerado irregular – uma foto do Medina campeão no Havaí – entenderam que houve violação de direito autoral e, ao invés de remover aquela única postagem, removeu todo um canal que tinha também o direito, mais do que liberdade de expressão, mas de imprensa. Imagina a gravidade disso. Quando se fala assim em ser responsabilizado pelo conteúdo, tem que se tomar cuidado porque a responsabilização das redes sociais ocorre quando ela descumpre um critério, por exemplo, em relação ao conteúdo patrocinado, que ela quer impulsionar. Se já se faz uma verificação do conteúdo que vai ser alavancado nas plataformas, o PL coloca alguns requisitos para que não se permita conteúdos antidemocráticos, terroristas ou discurso de ódio. O problema do PL, que é minha ressalva e acredito que é o que tem gerado muita insegurança para todos, é em relação à implementação de um protocolo de segurança por um órgão – que também não se sabe qual órgão vai ser – em caso de essas redes sociais não agirem com o dever de cuidado prévio. Ou seja, traça alguns requisitos que o provedor tem que observar, agindo proativamente, e caso essa entidade entenda que esse dever não foi atingido ela poderia instaurar um protocolo de segurança. E este protocolo de segurança, quando instaurado, todo o conteúdo de terceiro relativo à queixa ou a um motivo do protocolo de segurança – entendeu que era um ato antidemocrático e as redes sociais não agiram adequadamente – a empresa passa a responder em relação a todas essas postagens semelhantes. O cenário que temos hoje é o do Marco Civil, em que os provedores não respondem pelo conteúdo dos terceiros a não ser que descumpram uma ordem judicial. É claro que isso é muito cômodo para os provedores porque há situações de fato, e até pela dimensão que as fake news tomaram, fica muito difícil também para o Judiciário. Resumidamente, sou a favor da regulação das redes sociais, mas receio esse órgão que vai fazer essa atividade de fiscalização administrativa. Acredito que determinado tipo de violações teremos que ver no Judiciário, mas não podemos também deixar essas redes sociais fazendo o que bem entendem, especialmente na questão, por exemplo, da falta de transparência do algoritmo, o tipo de conteúdo que elas impulsionam. Isso já chegou a um nível muito crítico, essa ausência de transparência.
Alguns países já fizeram essa regulação, como a Alemanha. As bigtechs não gostaram, mas aceitaram. Está havendo um tratamento diferente dessas empresas em relação à regulamentação que o Brasil está propondo?
Vou falar sobre um cenário bem objetivo da minha atuação prática em relação, por exemplo, a pedidos judiciais de remoção de conteúdo, e identificação de criminosos. A forma como elas agem perante o Judiciário brasileiro é completamente distinta. Elas ignoram as determinações judiciais no Brasil, enquanto lá fora ordens semelhantes elas cumprem sem nem questionar. O que me parece, e eu já percebi há muito tempo, é que elas têm uma um certo desrespeito às instituições brasileiras justamente porque as punições não fazem nenhuma cócega aos seus negócios. Se o Judiciário aplica uma multa em primeira instância porque a empresa descumpriu o pedido judicial e ela recorre ao STJ, que reduz ou tira a multa, para ela vale a pena. Em relação à manifestação das bigtechs sobre o PL, embora muitas pessoas estejam discutindo isso, e é absolutamente legítimo que uma empresa se manifeste politicamente, o problema é quando começam a equiparar redes sociais com veículos de comunicação, que têm regras diferentes e não têm a capacidade que uma bigtech de impulsionar um conteúdo ou enviesar o debate. Ou seja, temos dois problemas nessa história. Um problema é que tecnicamente eles têm uma capacidade diferente e outro é que o conteúdo foi absurdo, fizeram ameaças, dizendo que a internet não vai ser a mesma e que a empresa vai sair do Brasil. Esse tipo de ameaça não é a primeira vez que acontece e já teve fora do Brasil. Nos Estados Unidos essas empresas se manifestaram em relação a uma legislação conhecida como Sopa, contra pirataria on-line, que afetava muito o negócio financeiro dessas empresas. Houve protestos da Wikipédia, que saiu do ar, do Google e de outros sites. Eles já fazem isso há algum tempo, sempre com esse discurso terrorista porque somos muito dependentes do uso da tecnologia. E criam esse debate de que é um projeto de censura, que tem um projeto de limitar o conteúdo. Eu acho que esse protocolo de segurança gera mais receio quando a legislação deixa de trazer quais são os critérios e transfere para uma regulamentação futura. Eu não posso ter regulamentação posterior de algo que pode até superar o que está na lei. No Brasil não é raro que uma regulamentação extrapole aquilo que a legislação permitiu. Além da Alemanha, tem legislação nesse sentido no Canadá, há uma discussão muito forte nos Estados Unidos, a Europa tem uma regulamentação avançada para ser discutida e que é bem semelhante ao PL que está no Brasil, que é basicamente colocar obrigações para que as empresas cumpram. Isso não é algo para cercear ou impedir a liberdade de expressão de maneira alguma, pelo contrário, é permitir a liberdade de expressão. As pessoas estão se esquecendo de que as redes sociais já exercem essa censura. Elas exercem a fiscalização de determinado conteúdo. Às vezes uma publicidade que a empresa entende que está equivocada ela não publica, e seu concorrente vai publicar. Eu tenho um caso da remoção daquela ficha empresarial de uma empresa e da outra continua. Não se consegue saber por que, não tem canais de comunicação, não tem a quem reclamar a não ser no Judiciário. E quando é o Judiciário, a rede social se apresenta como se fosse uma paladina da justiça e da liberdade, dizendo que cumpriu e que não é bem assim, que é difícil. Tem um caso recente em que a rede social simplesmente respondeu, em um processo de uma ficha empresarial de um laboratório de Goiânia que saiu do ar, em que o juiz fixou a multa, ela descumpriu no prazo que foi dado e disse que estava analisando se se teria que cumprir ou não a ordem do Judiciário. Chega a esse absurdo nas petições. É uma vivência que eu tenho e não é uma defesa política, nada disso, mas de ver na prática como elas conduzem de fato.
A Justiça vem agindo em relação a essas empresas, inclusive o STF tem tentado ter algum controle. É legítimo, já que não há uma lei que trate do tema, o STF tomar essas medidas?
Às vezes há um exagero e algumas decisões extrapolam o rito que seria adequado sob a justificativa de que nós não estamos em condições normais e que vale tudo. Eu não defendo essa linha. Preocupa-me, agora, por exemplo, com o adiamento da votação do PL, se vão colocar em pauta a discussão da inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Não há nada de inconstitucional nele, atende todos os requisitos formais e serviu muito bem. Eu me lembro que quando se permitiu a propaganda paga na internet foi feita uma resolução para dizer qual tipo de propaganda poderia ter. Na época, o Judiciário não usava as redes sociais e a discussão – eu me lembro muito bem que me chamou muito a atenção – quem foi discutir essa resolução foram as bigtechs e não a academia. E curiosamente, a única propaganda paga permitida naquela época foram as de impulsionamento pelas ferramentas próprias das redes sociais. A justiça brasileira criou um monstro, criou um cenário permitindo que essas empresas descumprissem ordem judiciais, que não ouvissem outros interessados, a própria polícia, para entender porque que não fornecia dados. Por exemplo, essas decisões que tem de suspensão de WhatsApp, agora, recentemente, Telegram por não contribuir com a investigação de crimes como pedofilia, terrorismo e incitação a ódio em escolas se dão depois que aplica multa, pede mais uma vez e chega num ponto em que o magistrado não tem mais armas e tem que usar essa medida de bloqueio. Quando se fala em bloqueio, a rede social vai dar atenção para o processo. Ainda que não tenha o dado, é o momento em que pela primeira vez ela explica as questões técnicas. E mesmo quando ela explica, no cenário atual, nós não temos elementos para ver se isso que ela está dizendo é de fato verdade porque ninguém vai lá no código investigar. O PL traz opções interessantes como, por exemplo, relatório de impacto, auditoria, eu consigo ver se o que a rede social está dizendo é verdade. E quando há essas decisões de bloqueios de conteúdo, a sociedade, ao invés de se indignar com um provedor que não cumpriu com uma ordem judicial para investigar um atentado a uma escola, que atingiu crianças, questiona a ordem do juiz. É uma inversão de valores inadmissível que mostra o poder das redes sociais.
Essas plataformas receiam que haja algum tipo de controle sobre os negócios delas, não se trata de defesa da liberdade de expressão e combate à censura?
Se elas fossem tão preocupadas com a liberdade de expressão, não removeriam conteúdos. Nós esquecemos que elas removem vários conteúdos e várias contas sem explicar e sem dar qualquer tipo de justificativa. Ainda que seja legítima a remoção, mas elas não explicam e muitas vezes não é legítimo. Eu já tive o caso de um veículo de comunicação, veículo da imprensa, que foi removido do YouTube e não se conseguia saber o porquê. Enquanto sociedade, temos que começar a entender um pouco também o jogo dessas redes sociais para não ficar entrando nesta defesa como se fosse cordeiros, sendo manipulados por essa rede social com medo de que o Estado é que vai criar censura quando de fato e nós já estamos sob censura. Porque quem faz censura hoje são os provedores das redes sociais porque eles determinam previamente o que vai ser exibido ou não na nossa tela. Eles que têm esse poder e o PL não fala de controle prévio. Eu elejo o Estado e não o dirigente da empresa privada. Se eu tiver que escolher quem vai fazer algum controle, eu prefiro que seja o Estado.
Já existe o Marco Civil da Internet e uma legislação que criminaliza atos como racismo, pedofilia, incitação ao odio, além dos casos de calúnia, injúria e difamação e também os modelos de negócios. É necessária outra lei para regular as mídias digitais?
Sim, porque alguns pontos têm que ser deixados mais claro. Por exemplo, o direito que tem uma pessoa de ser informada sobre o porquê sua conta foi removida é um direito claro, legítimo e fundamental e o PL entra mais na minúcia, dizendo o procedimento. Fica mais fácil e acaba gerando mais segurança jurídica para as empresas também. Porque passa um critério que todos os magistrados vão ter que seguir e, hoje, há uma legislação que prevê o direito fundamental, mas cada juiz interpreta o rito de uma forma. Isso gera insegurança. Mas de fato, tem muita coisa que não precisa de outra legislação, mas acho que nesse caso eu entendo que precisamos sim.
No PL, quais os pontos jurídicos são mais polêmicos e quais os pontos éticos são polêmicos?
O pior e mais polêmico é esse órgão que vai fiscalizar com o protocolo de segurança, mas não ele por si só, mas a falta de clareza sobre como ele vai agir. Há uma polêmica muito forte que me parece que já foi retirada do texto, que é a questão da remuneração do jornalismo. Da forma como está no projeto, pode ser que as empresas possam vir a impedir qualquer tipo de compartilhamento de conteúdo para não ter que pagar. Se não tomarmos cuidado, podemos prejudicar a imprensa ainda mais.Mais uma razão para regular porque o poder delas está grande demais. Tem a questão da imunidade parlamentar, mas eu não vejo esse cenário com preocupação porque me parece que o fato de ter imunidade enquanto parlamentar exercendo a função de parlamentar se estende para as redes sociais. Eles estão com uma preocupação muito grande em não poder mais se manifestar, mas se o cenário vai valer para todo mundo pode valer para eles também e que a imunidade fique só lá no parlamento. O impulsionamento de conteúdo é algo que me parece muito válido do ponto de vista de ter que indicar quem está financiando o conteúdo, ou seja, quem está pagando aquela publicidade. É importante que saibamos quem está pagando até para evitar caixa-dois em campanhas políticas. Ou seja, saber exatamente quem financiou aquela postagem para que a pessoa que cometeu uma fake news ou um outro ilícito, uma discriminação, possa ser punida. O que pode ser polêmico é a questão da subjetividade, o que pode ser considerado antidemocrático, difamatório ou discriminatório. Isso é um peso que talvez somente o Judiciário possa medir. Do ponto de vista ético, a discussão principal é saber até onde queremos que essas redes sociais sejam um estado paralelo. O que demonstrou nessa tentativa da semana passada é o quanto de fato precisamos de regulação porque quando elas querem controlar o conteúdo e enviesar o debate, elas fazem e de uma maneira muito grave, muito séria. Não só o conteúdo, falar que o PL é censura, que vai acabar com a internet, que vão fugir do Brasil, mas também a forma como fazem. Essa é uma discussão que temos que colocar na mesa. Só que infelizmente, o problema hoje no Brasil, é que toda discussão, qualquer tipo de regulação, qualquer tipo de debate cai nessa disputa política. E só estamos nessa polarização, esquerda e direita, justamente porque as bolhas das redes sociais assim o fizeram. É ingenuidade acreditar que são opções das pessoas pura e simplesmente, não são. Tem uma condução das próprias redes sociais. E elas querem o que com isso? Que fiquemos na rede social e para ficarmos na rede social o que ela vai mostrar? Aquilo que agrada para o usuário se sentir confortável. Nós gostamos de estar com aqueles que compartilham as mesmas ideias. Não é à toa que muitas pessoas questionaram os dados de eleições dizendo: ‘ora, eu vejo várias pessoas que votam no ciclano’ e, do outro lado também: ‘eu vejo várias pessoas que votam no fulano. Como deu esse resultado diferente?’ Porque não percebem que estão nas bolhas. Passou. Eu fico muito feliz que tenhamos essa discussão que mostra maturidade.
Essa discussão está ampliada e aprofundada o suficiente para que o PL vá a votação?
Eu acho que as pessoas não tiveram atenção suficiente enquanto o projeto estava tramitando. Ninguém dava o valor que ele tinha, mas as mudanças que foram feitas recentemente foram muito sérias, muito amplas e deveriam ter um melhor debate. Eu acho que tem que ter, sim, um melhor debate porque é um assunto muito complexo para se aprovar muito rapidamente, mas não podemos deixar de discutir. Se for prorrogar essa discussão, que prorrogue, continue com uma discussão técnica, de conteúdo, mas tem que haver essa discussão. Não dá para deixar para daqui a cinco, dez anos uma discussão dessa natureza, tem que ser imediato, tem que ser este ano ou, no mais tardar, ano que vem. Precisamos ter essa legislação que vá funcionar. Deixar a regulamentação para depois já vimos isso no Marco Civil da Internet. Quando entra com as medidas, argumentam que enquanto não regulamentar as medidas não estão valendo; enquanto não tiver o órgão, não se pode aplicar. Com a Lei de Proteção de Dados foi a mesma coisa: não tem a LPD, então não pode aplicar multa. E aí, ficamos jogando de barriga e não resolvemos o problema.
Sobre o órgão que seria responsável para fiscalizar, a Anatel teria essa competência para definir o que é ou não fake news??
Isso não é novidade e tem na Lei Eleitoral: quem vai dizer o que é inverídico ou não? É um problema sério. A definição de tipo penal para fake news é uma bobagem porque muitas pessoas compartilham conteúdo achando que é verídico mesmo. Dentre as opções que já foram colocadas na mesa, a que menos me agrada é a Anatel. Ela está preparada para atuar numa camada que chamamos de infraestrutura da internet, mas não tem esse conhecimento da camada lógica, que são os dados, que é o software em si.