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“A pandemia de Covid-19 não acabou”


Avatar Por Redação Tribuna do Planalto em 20/06/2022 - 00:07

Cristina Laval - Médica sanitarista, mestre e doutora em medicina tropical

E há o risco da ocorrência de novas pandemias, afirma a médica sanitarista, mestre e doutora em Medicina Tropical, com ênfase em Epidemiologia. Entre os fatores que podem propiciar a disseminação mundial de uma nova doença, Cristina Laval cita a emergência climática e sua consequente mudança nos ecossistemas, a expansão do agronegócio, especialmente no confinamento de aves, e o aparecimento de bactérias super-resistentes. “A possibilidade é real e temos que estar atentos a isso e, cada vez mais, investindo em mecanismos de detecção rápida para buscar respostas oportunas a essas possíveis pandemias no futuro.” 

Tribuna do Planalto – Goiás registrou aumento nos casos de Covid e também de mortes em decorrência da doença nos últimos dias. A que se deve esse cenário epidemiológico? Trata-se de uma nova onda?

Cristina Laval – Lá no final de dezembro e início de janeiro deste ano, quando começou a ter a circulação da variante Ômicron, tivemos realmente um aumento muito expressivo do número de casos, e se aumentam os casos, também aumentam a internação e óbitos. Entre 16 e 22 de janeiro, no pico daquela onda da primeira circulação da Ômicron, tivemos mais de 70 mil casos em uma semana e o auge do número de óbitos naquele período foi em torno de 206 óbitos. Depois disso, começaram a cair o número de casos e internações e chegamos ao final de abril deste ano com uma queda muito expressiva, com mais ou menos 1 mil casos por semana epidemiológica e, consequentemente, também caíram o número de internação e os óbitos. No início de maio, começamos a ver um aumento de casos, novamente pela Ômicron, e na última semana de maio foram registrados em torno de 21 mil casos. Se comparar com os 70 mil do pico de janeiro, tivemos um aumento, mas não na mesma proporção, exatamente porque é a mesma variante que está circulando e temos avançado muito no cenário de vacinação. Isso de alguma forma protege contra os casos mais graves, a internação e o óbito. É difícil considerar se é uma nova onda ou não porque a variante é a mesma. No entanto, chegamos a ter uma redução muito expressiva no intervalo desses dois picos. Portanto, pode-se dizer, sim, que estamos vivendo uma outra onda de Covid. Mas mesmo com esse aumento expressivo não tivemos a mesma proporção de internações e óbitos. Não dá para comparar com o cenário que tivemos com outras variantes, Alfa, Beta Gama e Delta. A proporção de internações e óbitos é muito menor porque temos uma variante que se mostrou altamente transmissível, mas com uma baixa patogenicidade, comparada a outras variantes, e ela surgiu num cenário epidemiológico diferente, no qual há um percentual de pessoas vacinadas muito grande. Apesar de a vacinação não impedir a transmissão, ela realmente consegue evitar internações e óbitos. Esse é o cenário que vivemos hoje e que pode voltar a se repetir, dando origem a outras ondas de coronavírus. E como essas ondas futuras vão se comportar, vai depender muito se é uma variante nova, como que está a proteção pela vacina no decorrer do tempo, são variáveis que temos que continuar acompanhando.  Sobre os óbitos, nós temos muitos problemas no sistema de registro, muitas falhas que são devidas ao sistema do Ministério da Saúde. Realmente, ficam dados represados e que vamos analisando ao longo do tempo e esses dados vão se acomodando. Lá no pico de janeiro, tivemos na pior semana 206 óbitos, num período de sete dias; hoje, o que estamos observando é que o maior número em uma semana chegou a 35 óbitos. Houve realmente um impacto muito menor dessa situação que começou no início de maio e persiste até hoje. 

Só há a Ômicron circulando ou ela predomina no momento? 

Desde que a Ômicron começou a circular no mundo, no segundo semestre do ano passado, ela tem se mostrado uma variante com essa característica de uma alta transmissibilidade e uma patogenicidade menor, levando a uma gravidade menor dos casos. Inclusive existem estudos que mostram que essa variante não tem ligação tão efetiva com as células pulmonares, essa agressão pulmonar, como acontecia com as outras variantes. Ao longo do tempo, vamos fazendo o sequenciamento genômico para ver qual a variante que está circulando, e no último sequenciamento genômico realizado aqui em Goiás de coletas feitas na segunda quinzena de abril e todo o mês de maio, a predominância absoluta de 100% das variantes que foram detectadas é de Ômicron. Ao longo do tempo foram aparecendo subvariantes da Ômicron, BA1 e BA2; já temos 112 municípios no Brasil, além do Distrito Federal com a circulação das subvariantes BA4 e BA5, que foram detectadas na África do Sul e em países da Europa, mas não detectamos essa variante aqui no Estado de Goiás, ainda. As variantes que apareceram nesse último sequenciamento foram as BA1 e a BA2, com uma frequência maior de BA2. 

Qual o perfil das pessoas que estão sendo internadas e vindo a óbito em decorrência da Covid? 

O que temos observado é que as populações mais vulneráveis, idosos que apresentam comorbidades e pessoas com imunossupressão, que estão com a vacinação incompleta ou que não se vacinaram têm até nove vezes maior, a sua taxa de internação e de óbitos do que aquelas pessoas que estão com o esquema primário completo mais as doses de reforço preconizadas. Isso mostra o quanto a vacinação é importante no controle dos casos mais graves e, consequentemente, dos óbitos. Outra questão importante que tenho ouvido alguns colegas comentarem  sobre a diferença do perfil do paciente é que lá atrás, quando não tinha ainda a vacinação ou uma vacinação com uma cobertura pouco expressiva e a circulação de outras variantes mais patogênicas, o paciente que se internava tinha um comprometimento pulmonar respiratório muito importante. Hoje, no paciente Covid positivo a repercussão do vírus no organismo é muito mais um desarranjo das doenças de base que ele tem:  uma descompensação da doença cardiovascular, da hipertensão, do diabetes, da sua doença autoimune, da sua doença reumática. Mudou também o perfil desse paciente. Isso vem reforçar o que já se conhece dessa variante, que é de alta transmissibilidade, mas de menor patogenicidade, e atingindo organismos mais vulneráveis, consegue levar ao desarranjo de suas doenças de base e, com isso, levar à internação e muitas vezes ao óbito. Tem sim, uma mudança de perfil que não pode ser desconsiderado. 

Houve alguma mudança no protocolo de tratamento. Já temos algum medicamento que combata o vírus? 

O tratamento de qualquer virose que não tem um medicamento específico fica muito focado nas medidas de suporte e no alívio dos sintomas. Ao longo do tempo tivemos a evolução nas pesquisas e vários antivirais vêm sendo pesquisados. No Brasil, tivemos a liberação pela Anvisa de dois antivirais para uso emergencial, do fim do ano passado para cá. No entanto, ainda não existe por parte do Ministério da Saúde um protocolo de utilização desses antivirais. O que seria um avanço importante, sobretudo para aquela população que tem o perfil que pode se agravar, precisar de internação e evoluir para o óbito.   

Sobre as medidas de controle, algumas cidades voltaram a exigir o uso de máscaras em locais fechados, assim como algumas escolas também adotaram a medida. O aumento de casos pode exigir o retorno de algumas das medidas restritivas?  

No início da flexibilização, sobretudo do uso de máscara, as autoridades sanitárias estaduais lançaram um nota de recomendação, acompanhando a recomendação da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Associação Médica Brasileira, muito clara com relação à manutenção do uso de máscara, independente do status vacinal e do ambiente em que se está,  se local aberto ou fechado: nas unidades de saúde; em locais onde há uma circulação grande de pessoas, como corredores comerciais, transporte público, repartições públicas; instituições de ensino, e aí entram todas as escolas; para determinados perfis de pessoas, como pessoas idosas acima dos 60 anos, sobretudo aquelas mais idosas ainda, acima dos 70 anos; pessoas com qualquer quadro de imunossupressão ou de comorbidades importantes, que são fatores de risco para internação e agravamento da doença; e gestantes. Houve uma recomendação de manutenção nessas situações, que englobam tanto o ambiente de maior risco quanto pessoas mais vulneráveis. No entanto, não vimos isso ser internalizado pela população. É como se o uso de máscara tivesse sido abolido. Vimos isso no dia a dia, no nosso local de trabalho, nas ruas, nos shows, nos eventos esportivos, onde há aglomeração e as pessoas estão sem máscara. Estamos observando que há municípios instituindo decretos para o retorno do uso de máscaras nas escolas. Mas ela não foi abolida. Nas recomendações, em tese, ela não teria que ter sido abolida. Outros municípios estão decretando a obrigatoriedade do uso de máscara no serviço de saúde, onde circulam várias pessoas e não se sabe qual a motivação que as levou a buscar um atendimento. Também não havia uma recomendação de não utilização e estão retornando com decretos municipais. Existe uma confusão na cabeça das pessoas de que a máscara foi abolida em qualquer situação. A recomendação é de que para as populações mais vulneráveis e nos ambientes de maior risco se mantenha o uso de máscara, independentemente de decreto, de flexibilização ou não porque isso é que vai proteger as pessoas, aliado, obviamente, à vacinação. Outra medida extremamente importante, que as pessoas também estão minimizando, é afastar de circulação e isolar os sintomáticos respiratórios, independentemente por qual etiologia ele está com sintoma de gripe. Se está com sintoma gripal, ele precisa ser afastado do convívio das pessoas e usar máscara, mesmo que não seja do grupo de risco e não esteja frequentando um ambiente de risco. Essas três medidas, a vacinação, o uso de máscara quando for recomendado e o afastamento de pessoas sintomáticas do convívio de outras são medidas muito valiosas para esse cenário epidemiológico, para mantermos o controle da doença. 

No caso das crianças menores de 5 anos, houve aumento no número de internações nessa faixa etária. Por que inicialmente o vírus não atingia de forma importante essas crianças e agora elas estão mais suscetíveis à contaminação e também ao agravamento dos casos? 

Quando há o aumento de número de casos, aumenta em todas as faixas etárias e, consequentemente, há também aumento de internações e óbitos em todas as faixas etárias. No entanto, temos observado que, no cenário atual, tem sim, um aumento na proporção de crianças menores de 5 anos internadas por Covid comparado com as outras faixas etárias. Isso é real e pode ser explicado pelo deslocamento da doença para faixas etárias mais vulneráveis. Essas crianças seriam mais vulneráveis porque ainda não está disponibilizada a vacina para elas.  Por isso é tão importante que a população elegível para a vacina se vacine para diminuir a circulação viral e, assim, proteger indiretamente essas populações mais vulneráveis que, no momento, ainda não se podem vacinar. Aliado às outras medidas, o uso de máscara recomendado para crianças maiores, adolescentes e adultos e o isolamento dos sintomáticos respiratórios. A Covid realmente aumentou nessa faixa etária, mas quando eu comparo com outros vírus respiratórios que também levam à síndrome respiratória aguda grave, esses outros vírus contabilizam mais internações do que a Covid nessa faixa etária menor de 5 anos. Há um aumento da vulnerabilidade dessas crianças ao vírus da Covid, mas, mais do que isso, temos agora a circulação de outros vírus respiratórios nessa faixa etária até mais importantes do que a Covid nesse cenário de internação. Lembrando que para a Influenza, nessa faixa de menores de 5 anos, temos vacina e a cobertura vacinal, infelizmente, está aquém da meta estabelecida para se ter uma boa proteção. São vários fatores, mas a Covid tem se mostrado mais preocupante nessa faixa etária de menores de 5 anos, neste momento. 

Quais as medidas adotadas durante a pandemia a senhora acredita que deveriam ser mantidas a fim de se evitar outras pandemias? 

A pandemia trouxe ensinamentos muito valiosos que nos levam à reflexão, não só como profissional de saúde, mas como ser humano.  Eu gostaria de pontuar algumas delas. A necessidade constante de investimento em ciência e tecnologia. Nosso país tem pesquisadores, têm capacidade técnica, mostramos isso durante essa pandemia, e não podemos ser apenas consumidores de tecnologia e insumos. Podemos estar inseridos nesse mercado de outra forma porque temos essa capacidade. E vimos que o sucateamento nos investimentos em ciência e tecnologia impactam negativamente, sobretudo, em nossa soberania. Precisamos de uma nova ordem mundial em relação a questões que são caras para nós do ponto de vista de sobrevivência, de saúde, de qualidade de vida para todos. Outra questão é o investimento em saúde: vimos o quanto é importante ter capilaridade no serviço de saúde e também nos serviços de vigilância para identificar essas situações de forma oportuna e dar resposta oportuna também. Do ponto de vista da nossa relação com o outro, e da nossa postura frente à vida, vimos o quanto a solidariedade, a empatia, a resiliência fazem a diferença.