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A novela, a política, a linha cruzada e o espirro


Elson Oliveira Por Elson Oliveira em 20/10/2024 - 06:00

Flaviano, distraído com uma conversa telefônica acidental, perde o fio da novela e o recado urgente que deveria passar.
Flaviano, distraído com uma conversa telefônica acidental, perde o fio da novela e o recado urgente que deveria passar. Foto: Canva

Certa noite, terminando o telejornal e já quase começando a novela das oito, Flaviano lembrou-se de telefonar para um amigo, a fim de passar-lhe um recado urgente do qual já estava se esquecendo. Olhou no relógio e achou que dava tempo. Não era hora de ninguém dormir ainda.

Tem homem que se acha machão e não admite gostar de novela de jeito nenhum. Senta-se bem em frente ao televisor e não perde uma cena. Mas se alguém toca no assunto, principalmente quando está perto dos amigos, desconversa e chega até a falar mal de quem “perde tempo com essas besteiras de televisão”.

Flaviano não pensava assim. Ele era noveleiro assumido, achava que as novelas de televisão, embora explorem a realidade crua e nua do cotidiano das pessoas, o que às vezes torna o quadro chocante, não são outra coisa senão um bom entretenimento. E ponto final.

Voltando ao assunto do telefonema, Flaviano levou o fone ao ouvido, para certificar-se de que estava tudo limpo e se surpreendeu com uma voz, lá longe, que dizia: “Alô!… Alôoo!… AAAlôoo!…”. Enfim, alguém atendeu: “Quem é?”. Ouvir conversa dos outros ao telefone não é uma atitude correta, mas também não chega a ser, assim, uma falta tão grave.

Permaneceu algum tempo na dúvida, se devia continuar ouvindo ou se seria melhor desligar. O certo é que em meio ao deve-não-deve, escuta-não-escuta, a curiosidade falou mais alto e ele não conseguiu se segurar: “É um amigo do Atílio, quero falar com ele, ele está?”, respondeu a voz insistente do outro lado da linha. “O Atílio? Ah o Atílio está, vou chamá-lo. Só um minuto!”… Questão de segundos, a prosa telefônica continuou:

— Alô, quem fala?

— Oi, Atílio, amigão do peito! Estou ligando pra saber como vão as coisas aí na sua cidade, a nova administração, o prefeito que você ajudou a eleger…

— É o Jorginho? Oi, gente boa, não estava reconhecendo a voz! Você quer saber do prefeito daqui? Começou pondo quente: chamou o povo, fez um baita mutirão na limpeza pública e deixou a cidade limpa.

— Então foi um bom começo.

— Foi nada. Depois disso, o cara se trancou lá no gabinete e não recebe uma viva alma. Disse que, enquanto não consertar os rolos que o seu antecessor deixou na prefeitura, não vai fazer nada pra ninguém. E olha que rolo é o que não falta!…

— E o secretariado?

— Uma lástima. Muito fraquinho. Sabe o… Isso mesmo, acertou. Pois é, é secretário de governo, vê se pode? Lembra do… Esse mesmo. Também virou secretário, acredita? E assim vai indo. Cada um pior do que o outro.

— Mas então não mudou nada! Pra quem fez campanha pregando mudanças…

— Mudou nada. Quer dizer, mudou de mão, mas o chicote no lombo do povo é o mesmo. E aí na sua cidade?

— Aqui também a coisa tá feia, Atílio.

— Mas o seu prefeito aí dizem que é um sujeito muito bem preparado.

— Não adianta, pois o homem não para na prefeitura, quer saber de cuidar só dos interesses dele!

— Mas tem alguém que responde por ele, quando sai, não tem?

— Não serve. O povo votou foi no bosta e quer falar é com ele, ora! Na campanha, visitou a casa de todo o mundo, bebeu café na cozinha e prometeu a doidado. Agora não recebe ninguém na prefeitura? Aaara!…

— Pelo menos ele montou um bom secretariado?

— Que nada! A mesma panelinha de sempre.

— Os buracos das ruas ele tampou, não tampou? Por que a última vez que estive aí a coisa tava feia.

— Tampou coisa nenhuma. São os mesmos também. Alega que vai esperar ter dinheiro pra fazer um serviço diferente do anterior, que tampava os buracos do asfalto das ruas com cascalho. Mas me diga uma coisa, você sabe o que já estão falando da primeira-dama daí?

— Não, não sei!… O quê?… Me conta!…

— Coisa pesada, viu!… É o seguinte…

Nessa hora, o clandestino Flaviano, que se portava tão bem na escuta, divertindo-se e vangloriando-se com aquela conversa que ouvia, pois falar mal de político é sempre uma boa diversão, de repente foi acometido por uma vontade louca de espirrar. E foi inevitável. “Atchim!!!…” Com isso, só ouviu um deles dizendo: “Saúde!”, ao que o outro respondeu: “Não fui eu que espirrei não!” E concluíram: “Então é linha cruzada!” E desligaram.

O ouvinte curioso acabou ficando muito contrariado com a história, pois, além de perder a novela na televisão, não pôde saber o que estavam falando da mulher do prefeito. E por fim se esqueceu do recado urgente que devia passar ao seu amigo. “Que azar, né!…”

Elson Oliveira

Elson Gonçalves de Oliveira foi professor de Língua Portuguesa, é advogado militante e escritor, com vários livros publicados.

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