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Infância, uma referência para a vida toda


Elson Oliveira Por Elson Oliveira em 08/09/2024 - 06:30

Criança no campo
Criança no campo. Foto: Freepik

Observando os netos ocupando-se mais do celular do que dá atenção às pessoas da família, foi inevitável lembrar da infância, toda ela passada numa corrutela do interior de Goiás.

Quando menino, imaginava ser tanta coisa na vida!… Verdade que o avô de hoje não se lembra bem o que desejava ser quando crescesse. Mas sentia forte a ânsia de abraçar o universo, de vencer na vida, de ser maior do que a sua insignificância.

Morava com os pais na parte de baixo da praça principal, que hoje leva o nome de seu progenitor. Subia a pé para a escola, às vezes sozinho, às vezes acompanhado de algum amigo. Uma brincadeira aqui, outra acolá, de vez em quando um entrevero sem importância. Coisa de menino. Briga mesmo somente na trajetória de volta para casa. Quase sempre as discussões eram resolvidas no tapa, porque faltava argumento aos briguentos e sobrava àqueles que se divertiam em atiçar os moleques a uma luta corporal. E menino que enjeitasse briga não era homem: era florzinha. E ninguém queria ser florzinha.

Normalmente os entreveros eram inexpressivos, mas aí entravam os meninos mais velhos, que gostavam do frevo, e colocavam a mão aberta entre os competidores, bradando: “Quem for homem cospe aqui!”. No que era atendido, o tal sujeito retirava a mão, e a cusparada ia diretamente nas fuças do outro contendor. Daí pra frente ninguém segurava mais. Era bater ou apanhar. Ninguém tinha sangue de barata pra levar cuspe na cara e deixar por isso mesmo.

A única via de acesso no sentido norte era fechada com uma porteira, onde terminava (ou iniciava) a povoação. Todos passavam pela tal porteira e pegavam a estrada até chegar ao Grupo Escolar, lá em cima.

Não eram só os meninos, havia as meninas também. Mas ficavam separadas dos moleques, porque segundo as normas da escola não podiam se misturar. Olhar podia, o que já significava alguma coisa. E quando se engraçavam, os olhos se cruzavam, o coração palpitava, as mãos gelavam e um quase engolia o outro com o olhar. Era muito bom. Uma sensação de posse e poder e de felicidade. Uma paixão juvenil desenfreada. Dali em diante, ninguém mais podia olhar para aquela menina, só o garoto que fora eleito: “Ela é minha e ninguém se atreva, ora!”. E se atrevesse entrava na porrada.

Na sala de aula, rolavam soltos os bilhetinhos com declarações de amor. A professora? Não podia nem sonhar com o que estava acontecendo, que o castigo era certo. A propósito, nunca saiu da sua lembrança o dia em que ficou ajoelhado sobre grãos de milho com os braços abertos detrás do quadro negro, ele e outro colega de infortúnio. Tudo por conta de traquinagem dentro da sala de aula. Foi triste, viu!…

Terminado o horário da escola, mal dava tempo para almoçar e o menino já saía de fininho, escondido de sua mãe, para encontrar-se com a turma. Atividades não faltavam: podiam caçar passarinho, beirar córrego e comer goiaba, manga ou jabuticaba em alguma tapera, e tomar banho no riacho.

Havia também o Largo da Igreja, que era enorme. Propício a traquinagens da gurizada. A noite, um breu, não havia luz elétrica. Às vezes chovia e escurecia ainda mais. Quando isso acontecia, ninguém brincava. Porém quando era lua clara, era só chegar ao Largo da Igreja e dar um grito. A molecada vinha na mesma hora. Brincavam de tudo quanto era coisa. Até de esconde-esconde. Não é preciso dizer que naquela época não havia celular, absorvendo toda a atenção da meninada. Assim a comunicação era feita na base da “garganta” e, na escola, através dos “bilhetinhos” que corriam de carteira em carteira.

Com as meninas a melhor brincadeira era a de “passar anel”. Consistia no posicionamento de todos, meninos e meninas, rapazes e moças, sentados bem juntinhos e de mãos postas sobre os joelhos. Um dos participantes vinha com o anel preso nas mãos, fazendo-as passar devagar e de maneira carinhosa por dentro das mãos de cada um dos participantes. E dentro de uma delas, normalmente a de simpatia de quem o passava, o anel era deixado. No final, a pessoa perguntava a qualquer um dos integrantes: fulano, com quem está o anel? Se a pessoa acertasse, era ela quem devia passar o anel em seguida; se errasse, recebia um castigo: recitar uma poesia, latir feito cachorro, pular como sapo etc. E aí, quem estava com o anel escondido iria passá-lo outra vez.

Tempo bom, que não volta mais, nunca mais. Eles cresceram, e elas (as meninas) também cresceram, e todos se tornaram adultos. A povoação também cresceu, ficou adulta e se transformou em cidade, uma bela cidade. Pequena, mas aconchegante.

Novos tempos, nova vida, nova realidade. Histórias que atravessam o tempo e nunca mais saem da lembrança. Como era bom ser menino e morar no interior!… E os meninos e meninas eram felizes, mesmo sem celular!…

Elson Oliveira

Elson Gonçalves de Oliveira foi professor de Língua Portuguesa, é advogado militante e escritor, com vários livros publicados.

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